Documento reflete o fracasso dos países em cumprir a agenda global de direitos humanos; no Brasil, aponta como o racismo, o negacionismo climático, o feminicídio, a violência contra mulheres cis, trans, LGBTQIA+ e a violência eleitoral marcaram violações 

É contínuo: o racismo movimenta e impulsiona a violência cometida pelo Estado no Brasil 

A ação policial pautada na repressão e no confronto, com operações militarizadas em territórios de favelas e periferias, com uso excessivo da força, desrespeitando parâmetros internacionais implicaram em uma série de violações como invasões de casas e destruição de bens, violência sexual, tortura psicológica, horas de intensos tiroteios, restrições à liberdade de circulação e na suspensão de serviços essenciais, como o fechamento de escolas e centros de saúde. Além disso, o uso excessivo da força policial, em especial da força letal, alimentou o ciclo de violência racial e resultou na sobre-representação de pessoas negras entre os mortos pelas mãos de agentes do Estado, impactando diretamente o direito à vida de muitos jovens negros moradores de favelas e periferias. Chacinas foram recorrentes em estados como o Rio de Janeiro, em que três operações policiais com a participação da Polícia Rodoviária Federal terminaram com a morte de 37 pessoas. Mães e familiares de vítimas de violência policial continuaram desassistidas e sem alcançar justiça pelas mortes de seus filhos e parentes, uma vez que investigações contra policiais acusados de participação em chacinas têm sido demoradas e muitas vezes são arquivadas por falta de provas.  

Na outra ponta, o Brasil continuou sendo um país inseguro para pessoas defensoras de direitos humanos e do meio ambiente. Uma vez mais, foi o país em que mais se matou pessoas trans no mundo. A constante violência contra mulheres cis e trans revela a desproteção deste segmento social.  

“Este relatório é muito mais do que um documento que reúne as tragédias de 2022. É um chamado para a ação das autoridades, que têm, por dever, a obrigação de garantir o direito a todas e todos, fazendo com que as violações deixem de acontecer e não se repitam. À sociedade, a responsabilidade de continuar vigilante, atenta e ativa na busca e na defesa de seus direitos’’, diz Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil. 

“Os efeitos deletérios do racismo, da misoginia, das fobias LGBTQIA+ e a vulnerabilidade extrema que acomete mulheres trans exige que todos e todas se mobilizem e engajem de maneira contínua. O estado de luta deve ser permanente – salvaguardando a liberdade de expressão, informação e associação – para que se possa produzir, de maneira irrestrita, as mudanças necessárias capazes de salvar vidas. O objetivo é um só: garantir a dignidade de todos, todes e todas”, enfatiza Jurema Werneck. 

Em um ano marcado pela tensão política, a Anistia Internacional documentou a escalada de violência durante todo o período eleitoral, que atingiu inclusive a esfera privada da vida das pessoas, afetou o convívio familiar e comunitário, culminando em assassinatos, agressões verbais e físicas e inúmeras violações de direitos. Parte das ações tiveram como base a disseminação de notícias falsas e as declarações do ex-presidente Jair Bolsonaro.    

Atuantes pela esfera pública, jornalistas, comunicadores, defensoras e defensores de direitos humanos foram seguidamente ameaçados, hostilizados, atacados e até mesmo assassinados.  

O mais recente Informe 2022/23 da Anistia Internacional: O estado dos Direitos Humanos no Mundo, que analisa a situação de direitos humanos em 156 países ao redor do globo, entre eles o Brasil, aponta que a população negra no Brasil é desproporcionalmente impactada pela violência institucional, seja por ação ou omissão estatal. A violência policial letal segue vitimando em sua maioria, homens negros e jovens, mas não deixa de fora mulheres, cis e trans e crianças; a crise climática, a degradação ambiental e o descaso das autoridades geraram o maior número de mortes decorrentes de chuvas extremas da última década, em que a maioria das vítimas eram pessoas negras. Os direitos econômicos, sociais e culturais das pessoas negras não foram garantidos, uma vez que são a maioria entre aqueles que vivem em situação de rua e em insegurança alimentar. A impunidade e falta de justiça permaneceram para os casos de homicídios cometidos pela polícia em serviço e de conflitos no campo, inclusive para os assassinatos de pessoas defensoras de direitos humanos e do meio ambiente.

Em contexto global, o documento evidencia que o uso excessivo da força e os homicídios ilegais cometidos pelas forças de segurança ocorreram de forma disseminada por toda a região das Américas, em países como Argentina, Brasil, Colômbia, México, Estados Unidos, República Dominicana e Venezuela e tiveram como alvos pessoas residentes em bairros pobres e racializados. Em metade dos 156 países em que a Anistia Internacional atua houve detenções arbitrárias de defensores e defensoras de direitos humanos. Na Rússia, civis foram presos e perseguidos por levantar denúncias sobre as atrocidades e violações de direitos humanos em curso no contexto da guerra.  Os direitos dos jornalistas e dos defensores dos direitos humanos foram reprimidos no Burundi, em Madagáscar, no Malawi, em Moçambique, no Níger, na República Democrática do Congo, em Ruanda, na Somália e no Zimbábue. Jornalistas foram mortos no Brasil, Colômbia, Haiti, México e Venezuela – sendo o México o país com o maior número de ocorrências (pelo menos 13 jornalistas foram assassinados). Violência, assassinatos, hostilidades, prisões e perseguições judiciais contra pessoas LGBTQIA+ foram comuns em muitos países da África, Américas, Oriente Médio e Norte da África. Pessoas transgêneros correm maior risco de serem mortas no Brasil, na Colômbia, na Guatemala, em Honduras e no México. Em Uganda, a Agência Nacional para ONGs ordenou o fechamento da Sexual Minorities Uganda, uma organização que atua para proteger os direitos das pessoas LGBTQIA+. A Suprema Corte dos EUA anulou uma garantia constitucional de longa data do direito ao aborto. No final de 2022, vários estados dos EUA aprovaram leis para proibir ou restringir o acesso ao aborto. Enquanto a Hungria e a Eslováquia introduziram novas medidas para limitar o acesso ao aborto, a Alemanha, a Holanda e a Espanha removeram algumas restrições e flexibilizaram ainda mais o acesso ao aborto. Os direitos das mulheres e meninas à autonomia pessoal, educação, trabalho e acesso a espaços públicos deterioraram-se significativamente no Afeganistão, por meio de vários decretos emitidos pelo Talibã. Mulheres refugiadas venezuelanas foram submetidas à violência e discriminação de gênero na Colômbia, Equador, Peru e Chile.   

Dois pesos duas medidas 

Na Europa, vimos como os estados-membros da União Europeia corretamente abriram as suas fronteiras para os ucranianos que fugiam da invasão russa. No entanto, o mesmo tratamento não foi oferecido àqueles que tentavam escapar da guerra na Síria e no Afeganistão. Da mesma forma, vimos “dois pesos e duas medidas” na recusa do Ocidente em confrontar o apartheid de Israel contra os palestinos, que teve como efeito o encorajamento de países como China, Egito e Arábia Saudita a ignorar e desviar as críticas de seu próprio histórico de violações.

A publicação analisa a resposta à invasão russa da Ucrânia, expondo um sistema internacional ineficaz para gerenciar crises globais: há uma deplorável falta de ação significativa sobre graves violações cometidas por alguns estados, incluindo Israel, Arábia Saudita e Egito.  

“A invasão da Ucrânia pela Rússia é um exemplo assustador do que pode acontecer quando os Estados pensam que podem desrespeitar o direito internacional e violar os direitos humanos sem consequências”, diz Agnès Callamard, secretária-geral da Anistia Internacional. 

“A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi criada há 75 anos, das cinzas da Segunda Guerra Mundial. Em seu cerne está o reconhecimento universal de que todas as pessoas têm direitos e liberdades fundamentais. Enquanto a dinâmica do poder global está em caos, os direitos humanos não podem ser perdidos na briga. Eles devem guiar o mundo enquanto ele navega em um ambiente cada vez mais volátil e perigoso. Não devemos esperar que o mundo queime novamente.” 

Leia, abaixo, os principais pontos do Informe 2022/23 da Anistia Internacional: O estado dos Direitos Humanos no Mundo – eixo Brasil:  

NEGACIONISMO CLIMÁTICO E O ENFRENTAMENTO DA CRISE AMBIENTAL 

Desastres causados pelos efeitos da crise climática e pela omissão do Estado em adotar medidas adequadas e suficientes para mitigá-los continuaram a impactar desproporcionalmente as comunidades marginalizadas, que historicamente são as mais afetadas pela falta de políticas públicas de habitação, saneamento básico e infraestrutura.  

Nos meses de fevereiro e março de 2022, pelo menos 238 pessoas morreram no município de Petrópolis, no Rio de Janeiro, devido a deslizamentos de terra e enchentes. Em junho, 128 pessoas perderam a vida também em deslizamentos de terra e enchentes no Recife, em Pernambuco. Em ambos os casos, a maioria das pessoas afetadas era de mulheres negras moradoras de favelas e de bairros marginalizados, que estavam em casa quando aconteceram os deslizamentos e as enchentes. Segundo um levantamento da Confederação Nacional dos Municípios, apenas nos primeiros cinco meses do ano foi registrada o maior número de mortes em uma década em decorrência de chuvas extremas.  

Em abril de 2022, o Brasil apresentou à Organização das Nações Unidas sua segunda atualização de Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) original. Segundo o rastreador de ação climática “Climate Action Tracker” da organização Climate Scorecard, a última atualização das metas de redução de emissões foi mais fraca do que a NDC original em termos de redução absoluta de emissões de carbono, ficando aquém da meta do Acordo de Paris de apresentar estratégias cada vez mais ambiciosas a cada atualização.  

DEFENSORES DOS DIREITOS HUMANOS: A VIDA EM XEQUE 

Em março de 2022, completaram-se quatro anos dos assassinatos de Marielle Franco, vereadora e defensora dos direitos humanos, e de seu motorista, Anderson Gomes. Ninguém foi condenado pelos crimes, apesar dos persistentes esforços das famílias, apoiadas por organizações da sociedade civil, para pressionar por justiça e participação efetiva nas investigações. Os dois homens acusados pelos assassinatos continuavam presos; porém, até o fim do ano, nenhuma data havia sido marcada para o julgamento. Os mandantes do crime ainda não haviam sido identificados e tampouco a motivação destes. 

Já em junho de 2022, o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira, defensores dos direitos dos povos indígenas, desapareceram em uma região próxima à Terra Indígena Vale do Javari, no estado do Amazonas. Seus corpos foram encontrados 11 dias depois. Três homens foram presos e, no fim do ano, aguardavam julgamento pela acusação de homicídio e ocultação de corpos.  

As investigações sobre os autores intelectuais dos assassinatos estavam em andamento.  

O ano foi marcado por ataques e ameaças constantes a ativistas por direitos humanos 

O DIREITO DE EXISTIR: A LUTA LGBTQIA+  

Em janeiro de 2022, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) publicou dados mostrando que pelo menos 140 pessoas trans foram mortas em 2021, fazendo com que, pelo 13° ano consecutivo, o Brasil fosse o país com o maior número de homicídios de pessoas trans no mundo. 

Candidatas trans foram submetidas a intimidações e ameaças durante o processo eleitoral. Ainda assim, pela primeira vez na história do país, duas mulheres trans foram eleitas deputadas federais. 

O MÃO QUE VIOLENTA: A INTERRUPÇÃO DA VIDA DAS MULHERES E MENINAS 

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 699 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2022, 62% das quais eram negras. 

LIBERDADE DE EXPRESSÃO, ASSOCIAÇÃO E DE REUNIÃO 

Incidentes de intimidação e violência por motivos políticos contra ativistas, pessoas defensoras dos direitos humanos, jornalistas e eleitores aumentaram exponencialmente no período eleitoral. Segundo um levantamento do instituto de pesquisas DataFolha, 7 em cada 10 pessoas relataram ter medo de se expressar politicamente no país. 

Em outubro, entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais, a Anistia Internacional Brasil documentou a ocorrência de pelo menos 59 casos de violência política. Houve agressões físicas, verbais e intimidações contra jornalistas e comunicadores. Pelo menos sete casos envolveram ameaças com armas de fogo e ao menos seis pessoas foram mortas. Líderes religiosos não alinhados com o discurso anti direitos humanos do então presidente foram hostilizados, assim como mesários e fiscais eleitorais também o foram.   

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