A pandemia da Covid-19 colocou o Brasil entre os primeiros países do mundo em números de mortes e também foi usada como pretexto para que as violações de direitos humanos, em 2020 aumentassem no país, aponta o Informe 2020/21 da Anistia Internacional: O estado dos Direitos Humanos no Mundo. Além disso, a crise na saúde aumentou a desigualdade social estrutural e sistêmica do país, hoje, cerca de 27 milhões de pessoas vivem na extrema pobreza, com menos de R$246 ao mês. A agenda negacionista do presidente Jair Bolsonaro agravou as consequências da pandemia da Covid-19 sobre a população brasileira, sobretudo nas comunidades mais empobrecidas e historicamente discriminadas, como população negra, povos indígenas, comunidades quilombolas, populações tradicionais, moradores de favelas e periferias, mulheres, LGBTQIA+, especialmente pessoas trans, quilombolas, migrantes e refugiados, pessoas em situação de rua, pessoas em privação de liberdade, e idosos e idosas, crianças e adolescentes desses diferentes grupos e trabalhadores e trabalhadoras informais e autônomos.
A retórica autoritária do governo federal traduziu-se em prática. Aumentou o risco para a defesa de direitos humanos no Brasil e o espaço cívico foi reduzido. ONGs, jornalistas, ativistas, defensores e defensoras de direitos humanos e movimentos sociais foram perseguidos e estigmatizados. Cresceu a violência de gênero, e a violência policial seguiu deixando rastros de mortes e violações de direitos humanos em favelas e periferias. A grave situação dos direitos humanos no Brasil e também no mundo é apresentada hoje, Dia Mundial da Saúde, no lançamento simultâneo do relatório anual da Anistia Internacional em mais de 150 países.
O Informe 2020/21 da Anistia Internacional: O estado dos Direitos Humanos no Mundo documenta como as mulheres, as trabalhadoras e os trabalhadores da saúde estiveram desprotegidos, assim como os povos indígenas, a população negra e quilombola, e outros grupos historicamente discriminados pela sociedade e negligenciados pelos governos vêm arcando com o peso maior da pandemia, enquanto alguns líderes fizeram uso político da crise e intensificaram seus ataques aos direitos humanos.
“Ao longo do último ano, testemunhamos certos líderes nas Américas responderem à pandemia com um misto de negacionismo, oportunismo e desprezo pelos direitos humanos. No Brasil, a lentidão e a recusa do presidente Jair Bolsonaro em cumprir seu dever de liderar as ações capazes de mitigar os impactos da pandemia e proteger da saúde de brasileiras e brasileiros e falta de coordenação nacional no enfrentamento da Covid-19 levaram o país ao triste índice de milhares de vidas perdidas. Desde o início da pandemia temos insistido que mortes evitáveis têm culpas atribuíveis. Vimos em 2020, no entanto, o Brasil e a região das Américas assolados por desigualdade, discriminação, repressão e intensificação de violações de direitos humanos”, disse Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.
Direito à saúde
A região das Américas foi a mais fortemente atingida pela Covid-19, com 54 milhões de casos e 1,3 milhão de mortes em 2020. EUA, Brasil e México apresentam os maiores números absolutos de mortos, depois de seus governos, juntamente com os da Nicarágua e Venezuela, terem lançado mensagens de saúde confusas, deixado de implementar políticas para proteger os setores de maior risco ou deixado de garantir transparência plena.
Embora o enfrentamento da pandemia de Covid-19 tenha sido desafiador no mundo inteiro, a epidemia no Brasil foi exacerbado pelas constantes tensões e falta de coordenação entre autoridades federais, estaduais e municipais na gestão e no enfrentamento da pandemia, assim como pela ausência de um plano de ação claro e baseado nas melhores informações científicas disponíveis e pela falta de transparência nas políticas públicas, entre outros fatores.
“É urgente uma mudança de rumo no enfrentamento da Covid-19, no Brasil. É obrigação do poder Executivo, governos federal, estaduais e municipais atuar em cooperação. O primeiro passo é priorizar as necessidades daqueles que foram deixados para trás por décadas de abandono e políticas excludentes e garantir seu acesso às vacinas contra a Covid-19. O poder público precisa garantir vacina para todos, de forma gratuita. Vacinação não é privilégio, é direito. O Sistema Único de Saúde tem sido referência na região das Américas de como é possível aplicar a universalidade na prestação de saúde. Durante todos esses anos, mesmo tendo seus recursos drenados de maneira incessante, inclusive a partir da Emenda Constitucional 95, que em 2016 congelou os investimentos em saúde e educação, o SUS seguiu prestando assistência a todas as pessoas no Brasil. O Informe lançado hoje aponta a negligência das autoridades públicas, e a Anistia Internacional exige que o direito à vida seja garantido por meio da imunização”, explica Jurema.
Defensores e defensoras de direitos humanos
A América Latina e o Caribe continuaram a ser a região mais perigosa para os defensores dos direitos humanos, especialmente para aqueles que trabalham para defender sua terra, seu território e o meio ambiente, tendo a Colômbia se mantido como o país mais letal do mundo para defensoras e defensores. O Brasil é o terceiro país do mundo que mais mata defensores e defensoras de direitos humanos e do meio ambiente, segundo relatório da ONG Global Witness. A Anistia Internacional destaca em seu relatório que em 18 de abril, Ari-Uru-Eu-Wau–Wau professor e agente ambiental foi assassinado na cidade de Jaru, em Rondônia, depois de receber várias ameaças de morte em 2019. E também menciona o assassinato de Marielle Franco que, três anos depois, ainda não foi solucionado.
“A luta pela garantia de direitos deve ser de todas e todos brasileiros e brasileiras. As ameaças sofridas por defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil e os assassinatos dessas pessoas revelam que as autoridades públicas estão falhando no seu dever de garantir o direito fundamental à vida. A vida e a luta de defensores e defensoras importam e o Brasil deveria assegurar que eles exerçam sua luta, ao invés de ocupar essa posição de destaque entre os mais letais para defensores no mundo”, critica Jurema Werneck.
Liberdade de expressão
A liberdade de expressão, continuou ameaçada no Brasil, Bolívia, Cuba, Uruguai, Venezuela e México, tendo este último sido o país mais letal do mundo para jornalistas em 2020. Autoridades públicas de mais de uma dúzia de países se aproveitaram das restrições adotadas por conta da pandemia e violaram direitos de liberdade de associação e de reunião pacífica. Indevidamente, esses direitos foram restritos pela polícia ou pelos militares, com o uso ilegal da força.
As ameaças de campanha do presidente Jair Bolsonaro de perseguir opositores, ONGs, movimentos sociais e desqualificar jornalistas foi cumprida em mais um ano de seu mandato. Segundo um relatório da ONG Artigo 19, entre janeiro de 2019 e setembro de 2020, integrantes do governo federal fizeram declarações agressivas e estigmatizantes contra jornalistas em razão do seu trabalho em 449 ocasiões. Os ataques incluíram intimidações, difamação, discriminação de gênero e deslegitimação da atividade jornalística. Já movimentos sociais, ONGs, ativistas e grupos em situação de vulnerabilidade, como os povos indígenas e quilombolas foram, de forma constante e sistemática, alvo de ataques do próprio presidente e de autoridades do seu governo.
“A Anistia Internacional acompanha com preocupação os ataques constantes do presidente Jair Bolsonaro e demais membros do seu governo a jornalistas e parte da sociedade civil organizada. Estas atitudes são graves flagrantes de violações de parâmetros internacionais de direitos humanos. Tanto a sociedade civil organizada, quanto a imprensa têm papel fundamental na construção de uma sociedade mais justa. Seguiremos nosso trabalho defendendo e exigindo que brasileiros e brasileiras tenham seus direitos humanos assegurados, conforme prevê a Constituição Federal de 1988”, afirma Jurema.
Direitos Econômicos e sociais
As Américas iniciaram 2020 como a região mais desigual do mundo, e isso apenas se agravou sob a pandemia, com 22 milhões de pessoas passando a viver na pobreza, enquanto o número de pessoas vivendo na pobreza extrema aumentou em 8 milhões. A Covid-19 atingiu duramente a vasta economia informal da região, ao mesmo tempo em que as medidas governamentais em muitos casos enfraqueceram os direitos sociais, econômicos e culturais dos que vivem nas situações mais precárias.
No Brasil, o governo federal não conseguiu mitigar as consequências sociais e econômicas da Covid-19 sobre os grupos em situação de vulnerabilidade, como as comunidades mais empobrecidas, as mulheres, a população LGBTI, os moradores de favelas, as pessoas em situação de rua, os povos indígenas e as comunidades quilombolas. Os programas sociais existentes e a criação do auxílio emergencial foram insuficientes e precários. Houve demora e muitas pessoas tiveram dificuldades no registro e no recebimento dos benefícios, e o processo foi marcado por denúncias de falta de transparência.
“Medidas ousadas e abrangentes para combater os efeitos sociais e econômicos desproporcionais da pandemia devem ser tomadas pelos governos. Foram as pessoas historicamente discriminadas as mais atingidas pelo aumento da desigualdade social. A elas é urgente assegurar que tenham oportunidades iguais de viver em segurança e desfrutar seus direitos humanos”, aponta Jurema.
Profissionais de saúde
Pelo menos 10.558 trabalhadores da saúde nas Américas haviam morrido de Covid-19 até 5 de março de 2021, com profissionais de saúde em quase todos os países reclamando da falha de seus governos em oferecer condições de trabalho seguras e equipamentos de proteção individual suficientes. Alguns dos que foram a público fazer denúncias enfrentaram sanções, como na Nicarágua, onde pelo menos 31 trabalhadores da saúde foram demitidos depois de manifestar suas preocupações.
O Estado brasileiro não forneceu assistência adequada aos trabalhadores da saúde durante a pandemia de Covid-19, aponta o relatório da Anistia Internacional. Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, os profissionais da saúde, em sua maioria mulheres, enfrentaram condições de trabalho desafiadoras, inclusive com falta de equipamentos de proteção individual, falta de protocolos claros para gerenciar infecções, ausência de apoio à saúde mental, falta de proteção social para as famílias dos trabalhadores e com contratos de trabalho precários.
Direitos dos povos indígenas e de outras comunidades tradicionais
O Brasil não cumpriu seus compromissos internacionais e suas próprias leis nacionais que garantem a proteção dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais. Além da pandemia da Covid-19, a mineração ilegal, as queimadas e a apropriação de terras para a criação ilegal de gado e para o agronegócio continuaram a ameaçar as comunidades indígenas e outros povos tradicionais, prejudicando seu direito à terra e ao meio ambiente.
Uso excessivo da força
Dor, sofrimento, violações de direitos humanos e mortes. Os homicídios provocados pela polícia aumentaram 7,1%, em relação a 2019, ou seja, são 17 mortes por dia. Pelo menos 3.181 pessoas – 79% das quais negras – foram assassinadas pela polícia entre janeiro e junho. O documento recorda que enquanto as pessoas seguiam as recomendações das autoridades internacionais de saúde para adotar medidas de distanciamento social e ficar em casa, os policiais continuaram a realizar incursões nas favelas para efetuar prisões que terminaram em homicídios. Como a do menino João Pedro de Mattos, de 14 anos, que teve seus sonhos interrompidos durante uma incursão policial na Comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, em maio de 2020.
No mês seguinte, uma decisão do Supremo Tribunal Federal suspendeu as operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, enquanto durasse a pandemia da Covid-19. A medida representou uma queda de 74% nas mortes cometidas pela polícia. A impunidade e a falta de acesso à justiça continuam a ser uma preocupação da Anistia Internacional.
Direitos das mulheres e das meninas
O isolamento social imposto pela Covid-19, para algumas mulheres, trouxe à luz um perigo tão letal quanto o vírus: a violência doméstica. Dados consolidados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelaram que a taxa de feminicídio aumentou em 14 dos 26 estados da federação entre os meses de março e maio de 2020 em comparação ao mesmo período de 2019. No estado do Acre, por exemplo, houve um aumento de 400% no índice de feminicídios. As medidas para proteger mulheres e meninas foram inadequadas, e as investigações de casos de violência de gênero foram em muitos casos insuficientes.
“Existe uma pandemia dentro da crise da Covid-19, chamada violência de gênero. Há 14 anos o Brasil possui a Lei Maria da Penha que prevê a proteção das mulheres, mas ainda convive com números elevados de agressões e mortes. Exigimos o cumprimento integral desta lei e seus mecanismos e a criação de outras medidas para garantir o direito básico das mulheres à vida. A violência de gênero aumentou em todo o mundo e as mulheres são maioria dentre os trabalhadores dos serviços essenciais: possuem maior risco de adoecimento e sobrecarga com trabalho doméstico não remunerado. As autoridades brasileiras precisam agir urgentemente”, aponta Jurema Werneck.
Conquistas das Américas
Apesar das denúncias e violações ocorridas no Brasil. A região das Américas avançou em alguns pontos na luta pelos direitos humanos.
A Argentina fez história em dezembro de 2020, ao tornar-se o maior país da América Latina a legalizar o aborto, graças a uma campanha prolongada travada por um movimento feminista vibrante. Em novembro o México tornou-se o 11º país da América Latina e do Caribe a ratificar o Acordo de Escazú, um tratado regional sem precedentes para a proteção do meio ambiente e dos defensores ambientais. Com isso, o acordo entrará em vigor em 22 de abril de 2021.
O Brasil assinou esse tratado há 2 anos, mas ainda não ratificou. E, embora as ações sobre mudança climática tenham continuado limitadas em todo o continente, o Chile tornou-se o primeiro país da região, e um dos primeiros do mundo, a apresentar uma meta de redução de emissões para 2030.
A injustiça e discriminação racial persistiram. Mas as rações à morte de George Floyd levoaram milhões de pessoas nos EUA a participar dos protestos do movimento Black Lives Matter e importantes debates sobre racismo foram colocados em pauta.
“A Anistia Internacional é um movimento de 10 milhões de pessoas que se unem para transformar injustiças em garantia de direitos. Nos fortalecemos mutuamente com o engajamento e a resiliência que testemunhamos da parte de ativistas de toda a região das Américas, especialmente mulheres e jovens. Sua coragem diante das adversidades nos mostra que podemos criar um mundo mais justo para todos”, disse Jurema Werneck.