Novas provas reunidas no Estado de Rakhine apontam para o macabro massacre de hindus, em que  homens, mulheres e crianças foram presos e executados. É urgente o acesso de investigadores independentes da ONU.

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Após uma investigação detalhada no interior do Estado de Rakhine, em Mianmar, a Anistia Internacional revelou hoje que um grupo armado de Rohingya, empunhando armas e espadas, é responsável por pelo menos um massacre na região e suspeito por outro massacre envolvendo quase 100 mulheres, homens e crianças hindus, além de assassinatos e sequestros ilegais de aldeões hindus em agosto de 2017.

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Baseado em dezenas de entrevistas conduzidas na região e na fronteira com Bangladesh, e a partir de provas fotográficas analisadas por patologistas forenses, a organização revelou como os combatentes do Exército de Salvação Arakan Rohingya (ARSA, na sigla em inglês) semearam medo entre os hindus e outras comunidades étnicas com esses ataques brutais.

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“Nossa mais recente investigação esclarece as violações de direitos humanos cometidos pelo ARSA durante a sombria história recente do norte de Rakhine”, disse Tirana Hassan, diretora de Resposta a Crises da Anistia Internacional.

“É difícil ignorar a absoluta brutalidade do ARSA, que deixou marcado para sempre os sobreviventes com quem falamos. Responsabilizar essas atrocidades é tão crucial quanto é para os crimes contra a humanidade levados a cabo pelas forças de segurança de Mianmar no norte do estado de Rakhine. ”

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Massacre em Kha Maung Seik

Por volta das 8h do dia 25 de agosto de 2017, o ARSA atacou a comunidade hindu na aldeia de Ah Nauk Kha Maung Seik, em um aglomerado de aldeias conhecidas como Kha Maung Seik, norte de Maungdaw. Na época do ataque, os aldeões hindus viviam próximos aos aldeões de Rohingya, que são em maioria muçulmanos. Os moradores de Rakhine, que são predominantemente budistas, também moravam na mesma área.

Membros do ARSA posam para vídeo divulgado na internet – Foto de @ARSA_official via Twitter

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Homens armados vestidos de preto, e aldeões Rohingya locais à paisana, juntaram dezenas de mulheres, homens e crianças hindus. Eles roubaram, amarraram e vendaram os olhos antes de leva-los para os arredores da aldeia, onde separaram os homens das mulheres e crianças pequenas. Poucas horas depois, os combatentes do ARSA mataram 53 dos hindus, em estilo de execução, começando com os homens.

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Oito mulheres hindus e oito de seus filhos foram raptados e tiveram suas vidas preservadas após os combatentes do ARSA forçaram as mulheres a concordar em se “converter” ao islamismo. Os sobreviventes foram forçados a fugir com os combatentes para Bangladesh vários dias depois, antes de serem repatriados para Mianmar em outubro de 2017 com o apoio das autoridades de Bangladesh e Mianmar.

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Bina Bala, mulher de 22 anos que sobreviveu ao massacre, disse à Anistia Internacional:

“[Os homens] empunhavam facas e barras de ferro compridas. Eles amarraram nossas mãos nas nossas costas e nos vendaram. Eu perguntei o que eles estavam fazendo. Um deles respondeu: “Você e Rakhine são a mesma coisa, você tem uma religião diferente, você não pode viver aqui. Ele falou no idioma de Rohingya. Eles perguntaram que pertences nós tínhamos, então eles nos bateram. Por fim, dei-lhes meu ouro e meu dinheiro”. 

Todos os oito sobreviventes entrevistados pela Anistia Internacional disseram que ou viram parentes hindus sendo mortos ou ouviram seus gritos. Raj Kumari, 18, disse: “Eles torturaram os homens. Nos disseram para não olhar para eles … Eles tinham facas. Eles também tinham algumas pás e barras de ferro… Nos escondemos nos arbustos e pudemos ver um pouco… Meu tio, meu pai, meu irmão… todos foram mortos ”.

Bina Bala, de 22 anos, sobreviveu ao massacre contra hindus cometido por rebeldes rohingya – Andrew Stanbridge/Anistia Internacional

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Formila, de cerca de 20 anos, disse à Anistia Internacional que não viu quando os hindus foram mortos, mas que os combatentes “voltaram com sangue nas espadas e nas mãos” e disseram às mulheres que os homens haviam sido mortos. Mais tarde, quando Formila e as outras sete mulheres sequestradas foram levadas embora, ela voltou e viu os combatentes do ARSA matarem outras mulheres e crianças. “Eu vi homens segurando as cabeças e cabelos [das mulheres] e outros segurando facas. E então eles lhes cortaram as gargantas”, disse ela.

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De acordo com uma lista detalhada dos mortos, cedida à Anistia Internacional, as vítimas de Ah Nauk Kha Maung Seik incluem 20 homens, 10 mulheres e 23 crianças, 14 das quais com menos de oito anos de idade. O dado confere com inúmeros depoimentos que a organização colheu em Bangladesh e Mianmar, de sobreviventes e testemunhas, bem como de líderes comunitários hindus.

Parte de uma lista dada à Anistia Internacional por líderes da comunidade hindu, com detalhes sonre o número de hindus mortos em dois massacres no agrupamento de aldeias de Kha Maung Seik, no estado de Rakhine, no norte de Mianmar, em 25 de agosto de 2017. © Particular

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No mesmo dia, todos os 46 homens, mulheres e crianças hindus da aldeia vizinha de Ye Bauk Kyar desapareceram. Membros da comunidade hindu no norte do Estado de Rakhine presumem que a comunidade dizimada pelos mesmos combatentes do ARSA. Somado ao do Ah Nauk Kha Maung Seik, o número total de mortes é estimado em 99.

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Os corpos de 45 pessoas de Ah Nauk Kha Maung Seik foram desenterrados em quatro valas no final de setembro de 2017. Os restos mortais do restante das vítimas daquela aldeia, assim como todos os 47 de Ye Bauk Kyar, não foram encontrados até agora.

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“Neste ato brutal e sem sentido, membros do ARSA capturaram dezenas de mulheres, homens e crianças hindus e os aterrorizaram antes de matá-los do lado de fora de suas próprias aldeias. Os perpetradores desse crime hediondo devem ser responsabilizados”, disse Tirana Hassan.

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Outros homicídios ilegais de hindus por parte do ARSA

A Anistia Internacional também documentou o envolvimento do ARSA em outros assassinatos e ataques violentos contra membros de outras comunidades étnicas e religiosas.

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Em 26 de agosto de 2017, membros do ARSA mataram seis hindus – duas mulheres, um homem e três crianças – e feriram outra mulher hindu nos arredores da cidade de Maungdaw, perto da aldeia de Myo Thu Gyi.

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Kor Mor La, de 25 anos, foi uma das duas mulheres que sobreviveram ao ataque, junto com quatro crianças. Seu marido Na Ra Yan, 30 anos, e sua filha de cinco anos, Shu Nan Daw, foram mortos. “As pessoas que nos alvejaram estavam vestidas de preto. Eu não conseguia ver o rosto deles, apenas os olhos. Eles tinham armas e espadas compridas”, disse Kor Mor Lar. “Meu marido foi baleado ao meu lado. Eu fui baleada [no peito]. Depois disso, eu estava quase inconsciente”.

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As mortes ocorreram poucos dias depois de os combatentes do ARSA terem desencadeado uma série de ataques a cerca de 30 postos de segurança de Mianmar em 25 de agosto de 2017, provocando uma ação ilegal e de violência desproporcional por parte das forças de segurança de Mianmar. A Anistia Internacional e outras organizações documentaram detalhadamente como essa empreitada foi marcada por assassinatos, estupros, tortura, queima de aldeias, táticas forçadas de fome e outras violações que constituem crimes contra a humanidade de acordo com o Direito Internacional. Mais de 693.000 pessoas Rohingya foram forçadas a fugir para Bangladesh, onde ainda permanecem.

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Dezenas de milhares de pessoas de outras comunidades étnicas e religiosas também foram deslocadas dentro do Estado de Rakhine. Embora a maioria tenha voltado para suas casas, alguns continuam a viver em abrigos temporários, seja porque suas casas foram destruídas ou porque temem mais ataques do ARSA caso retornem para suas aldeias.

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Investigações independentes são necessárias

“Os terríveis ataques do ARSA foram seguidos pela campanha de limpeza étnica dos militares de Mianmar contra a população Rohingya como um todo. Ambos devem ser condenados – violações dos direitos humanos ou abusos de um lado nunca justificam abusos ou violações do outro”, disse Tirana Hassan.

“Todas as famílias de sobreviventes e vítimas têm o direito à justiça, verdade e reparação pelo imenso dano que sofreram.”

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Em uma reunião do Conselho de Segurança da ONU na semana passada, o representante permanente de Mianmar criticou alguns membros da ONU por apenas escutar “um lado” da história e não reconhecer os abusos cometidos pelo ARSA.

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“O governo Mianmar não pode criticar a comunidade internacional por ser unilateral e, ao mesmo tempo, negar o acesso ao norte do estado de Rakhine. A dimensão total dos abusos cometidos pela ARSA e as violações dos militares de Mianmar não serão conhecidas até que investigadores independentes de direitos humanos, incluindo investigadores da ONU, tenham acesso total e irrestrito ao estado de Rakhine”, disse Tirana Hassan.

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