Por Diogo Flora*

No dia 14 de março de 2018, estampada nas capas dos principais jornais, a notícia que milícias formadas principalmente por policiais militares cresciam descontroladamente na região metropolitana do Rio de Janeiro. Eram, enfatizava-se nos textos, 2 milhões de pessoas coagidas, no seu dia a dia, por esses grupos criminosos de agentes estatais. A milícia domina os territórios quase sempre com a arma e o distintivo do Estado, mas se sustenta com uma ramificação de atividades econômicas: cobram taxa de segurança, pirateiam sinal de TV fechada, agenciam o transporte alternativo e, em certos casos, obrigam trabalhadores a consumir água e alimentos fornecidos pelas quadrilhas.

A milícia não era um problema novo em 2018. Dez anos antes, o então deputado estadual Marcelo Freixo, que passaria a viver sob constante risco de morte, havia concluído a CPI das Milícias, pedindo o indiciamento de 225 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis. A temerosa notícia sobre as milícias não foi o episódio que mais marcou aquele 14 de março de 2018. Na noite deste mesmo dia, por volta das 21h30, quando as capas de jornal já estavam impressas e a maioria dos noticiários já haviam ido ao ar, a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram emboscados e executados por rajadas de disparos, de forma cruel e sem possibilidade de defesa. Marielle morreu aos 38 anos de idade, dentro de seu automóvel, quando voltava de um debate com jovens negras na Casa das Pretas, na Lapa, Centro do Rio de Janeiro.

Conhecia Marielle pessoalmente. Participávamos de atividades juntos. Tínhamos amigos em comum. A dor foi dilaceradora e a angústia, por ver tantos sofrendo ao meu lado, sufocante. Lembrei-me de sua filha, de sua companheira, de sua irmã e de seus pais. O telefone começou a tocar, com camaradas ainda incrédulos do terrível acontecimento. Foi um dia de luto.

Marielle fora eleita em 2016, em sua primeira candidatura, com 46.502 votos. Um fenômeno eleitoral, sendo a vereadora mulher mais bem votada do Rio de Janeiro e a segunda do país. Esse resultado não foi acidental, pelo contrário, expressou um desejo de representação há muito tempo sufocado, afinal, Marielle era mulher feminista, bissexual, negra antirracista e favelada que lutava pelos direitos da periferia. Como vereadora, Marielle trabalhou na coleta de dados sobre a violência contra as mulheres, pela garantia do aborto nos casos previstos por lei e pelo aumento na participação feminina na política. Em pouco mais de um ano, redigiu e firmou dezesseis projetos de lei, dois dos quais foram aprovados: um que regulou o serviço de mototáxi e a Lei das Casas de Parto, visando a construção desses espaços cujo objetivo é fornecer a realização de partos normais. Ela se apresentava assim em seu site oficial: “Sou mulher, negra, mãe e cria da favela da Maré.”

Marielle era uma potência. Nascida no Complexo da Maré, começou a trabalhar aos 11 anos. Frequentou a primeira turma do pré-vestibular comunitário da Maré e ingressou com bolsa integral no curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Depois, no mestrado em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF) com bolsa da CAPES, onde defendeu a dissertação intitulada “UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”, ancorando em Loïc Wacquant e no conceito de Estado Penal uma forte crítica à militarização da vida na favela, que substitui a política pela polícia.

Mas, não se tratava apenas de uma intelectual da favela. Marielle era uma militante preocupada com a defesa intransigente dos direitos humanos. Sua militância teve início nos anos 2000, quando viu uma amiga próxima ser assassinada em uma troca de tiros de policiais e traficantes. Em 2007, foi convidada a participar da equipe do deputado estadual Marcelo Freixo, que havia sido eleito pela primeira vez, com uma campanha focada na defesa dos direitos humanos. Em seguida, assumiu a coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, responsável por receber denúncias contra policiais e pelo apoio jurídico e psicológico a familiares de vítimas de homicídios, inclusive policiais vítimas. O ex-Comandante da Polícia Militar, coronel Íbis Pereira, comentou em entrevista sobre Marielle que “é uma bobagem dizer que não defendia policiais.”

Marielle Franco era uma figura marcante para todos que a conheciam e deixou um legado combativo e inspirador. A determinação nas palavras, o engajamento social e o caráter incorruptível foram suas marcas pessoais. Tanto é que seu corpo foi velado por uma multidão de pessoas enlutadas em frente à Câmara dos Vereadores da cidade.

As investigações sobre a execução da vereadora avançaram em muitos aspectos e temos, hoje, uma visão um pouco mais clara do que aconteceu naquele 14 de março de 2018. Segundo as investigações, dois veículos participaram da emboscada, um bloqueando o automóvel da vereadora, impedindo a fuga e o outro veículo, um Cobalt prata, a seguiu desde seu embarque até o local do crime. Este último veículo, apontam as investigações, era conduzido por Élcio de Queiroz, um ex-policial que foi expulso da corporação. O outro ocupante do veículo era Ronnie Lessa, sargento reformado da PM, que desferiu 13 disparos a cerca de 2 metros de Marielle, 4 dos quais acertaram sua cabeça e 3 as costas de seu motorista, que morreu por estar na linha de tiro do assassino. Uma assessora de Marielle que estava ao seu lado sobreviveu. O ataque ocorreu na Rua Joaquim Palhares, no bairro do Estácio, a pouco mais de 3 Km do evento que ela participou momentos antes naquela noite. Das 11 câmeras de tráfego existentes no trajeto, 5 estavam desligadas, aparentemente sem explicações.

Marielle foi violentada em sua memória logo após o crime. Notícias falsas, mentiras e acusações contra o caráter e questionando a vida de Marielle foram disparadas em redes sociais, inclusive por pessoas importantes no meio jurídico nacional. A tentativa de desqualificar a defensora de direitos humanos foi tão voraz que levou a Justiça do Rio de Janeiro a determinar  a suspensão de publicações mentirosas e caluniosas sobre a vereadora, como as que a acusavam de ter sido eleita pelo crime organizado e de ter envolvimento com o tráfico de drogas.

A vida e a luta de Marielle inspiraram manifestações em todo o mundo.  Mais de 160 cidades, de norte a sul do Brasil, e mais de 15 países em 3 continentes realizaram manifestações em homenagem a Marielle e exigindo que as autoridades brasileiras elucidem o crime. Em 13 de abril, a Anistia Internacional também cobrou das autoridades a resolução do caso. “O Estado deve garantir que o caso seja devidamente investigado e que tanto aqueles que efetuaram os disparos quanto aqueles que foram os autores intelectuais deste homicídio sejam identificados. Caso contrário, envia uma mensagem de que defensores de direitos humanos podem ser mortos e que esses crimes ficam impunes”, destaca um trecho da carta aberta.

A repercussão internacional foi grande e, em 6 de agosto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, pediu que o Brasil adotasse medidas cautelares para a proteção da viúva de Marielle. Dois dias depois, o então Ministro da Justiça, Raul Jungmann, afirmou que o “envolvimento de agentes do Estado e de políticos dificulta o esclarecimento do caso Marielle.” Em novembro, o Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, general Richard Nunes, afirmou que, “com toda certeza”, grupos milicianos estariam envolvidos no assassinato da vereadora.

As primeiras prisões como resultado das investigações começaram a aparecer em janeiro de 2019, quando a polícia prendeu o major da Polícia Militar Ronald Pereira, por suspeita de envolvimento no assassinato. De acordo com informações oficiais, o major vinha sendo investigado com base na suspeita de integrar a cúpula do chamado Escritório do Crime – que supostamente seria um grupo de matadores de aluguel. O major Ronald Pereira foi denunciado à Justiça Criminal por comandar negócios ilegais, como grilagem de terra e agiotagem.

Em 12 de março de 2019, dois dias antes de completar um ano do assassinato de Marielle e Anderson, finalmente foram presos os suspeitos de serem os executores diretos do assassinato, Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz. De acordo com o noticiado nas investigações, a polícia teria chegado a eles depois de uma sofisticada investigação, que usou informações de milhares de sinais de telefone celular para refazer o percurso do veículo utilizado no crime e identificar os criminosos. O assassinato havia sido, segundo investigações, planejado em minúcias, durante meses, e a vida e a rotina da vereadora, assim como de pessoas próximas a ela, foram profundamente investigadas pelos assassinos.

O primeiro inquérito policial do caso foi concluído pelo delegado Giniton Lages em março de 2019. Neste inquérito foram colhidos depoimentos de 129 pessoas, entre familiares, amigos e funcionários da casa legislativa. Entre as peças técnicas juntadas estão um Laudo de Perícia Papiloscópica; dois Laudos de Exame de Necropsia; seis Laudos de Componentes de Munição; um Laudo de Exame em Local; dois Laudos de Exame de Clonagem; cinco Laudos de Confronto Balístico; um Laudo de Informática; dois Relatórios de Análise de Imagem Audiovisual (um de imagens e outro de dados); e um documento de Informação Técnica. A este inquérito principal, que descobriu a identidade dos supostos executores Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, que estão sendo processados e presos, somam-se outros que buscam elucidar elementos ainda desconhecidos do crime, inclusive as identidades dos mandantes.

Em maio de 2019, uma operação da Polícia Civil e do Ministério Público cujos alvos eram milicianos atuantes na cidade do Rio de Janeiro prendeu dois homens, Rafael Guimarães e Eduardo Nunes, suspeitos de serem os responsáveis pela clonagem do carro Cobalt prata usado no assassinato da vereadora. Na mesma operação, foi preso um sargento da Polícia Militar apontado pela Polícia Federal como responsável por obstruir as investigações. Em seguida, no mês de julho, após depoimento de um barqueiro nas investigações, a polícia e a Marinha realizaram uma operação no mar da Barra da Tijuca à procura das armas utilizadas no crime. Segundo as investigações, Márcio Montavano, teria retirado as armas de um esconderijo e as teria levado, com ajuda da mulher de Ronie Lessa, a Sra. Elaine Lessa, além do irmão dela, o Sr. Bruno Figueiredo, e de um homem chamado Josinaldo Freitas, até o barco de uma  testemunha e as descartado próximo das Ilhas Tijucas. Elaine Lessa, também acusada de participar da milícia, está ligada à apreensão de 117 componentes de fuzil de uso restrito, uma das maiores já realizadas no Rio de Janeiro. Todos os citados foram presos.

O caso sofreu uma reviravolta em julho de 2019, quando o presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, suspendeu todas as investigações relacionadas ao assassinato da vereadora, com o argumento de que eram fundadas em informações obtidas irregularmente através do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

Recentemente, outra reviravolta. As investigações levaram à prisão de Maxwell Corrêa sargento bombeiro, acusado de participar do planejamento do assassinato de Marielle e do descarte das armas do crime. O mandado de prisão foi cumprido na casa do acusado, uma mansão avaliada em cerca de 2 milhões de reais, com carro de luxo na garagem, um padrão de vida incompatível com seu salário.

Como se vê, as investigações já responderam muitas perguntas. Esse avanço só foi possível graças à pressão dos defensores e defensoras de direitos humanos que honram o legado de Marielle Franco. Foi fundamental, por exemplo, o monitoramento constante realizado pela Anistia Internacional e pela família de Marielle e de Anderson sobre as investigações. O monitoramento constante acompanhado de audiências com o Governador Wilson Witzel e com o chefe do Ministério Público do Rio de Janeiro, José Eduardo Gussem. Quando completou-se 1 ano do assassinato, a Anistia entregou um manifesto com cerca de 780 mil assinaturas exigindo a solução do caso, resultado de mobilização nacional e internacional, gerando visibilidade e pressão pública.

Vitórias importantes foram alcançadas. Um exemplo foi a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de não federalizar o caso, mantendo as investigações com a Polícia Civil do Rio de Janeiro e não com a Polícia Federal. A não federalização era uma demanda não apenas da família da vereadora, mas do Ministério Público Estadual. Também devemos lembrar da fundação do Instituto Marielle Franco, com o intuito de buscar justiça sobre o caso, além de defender a memória da vereadora e articular a formação política para mulheres, população negra e favelada.

Entretanto, ainda restam perguntas que precisam ser respondidas. A prisão dos executores e demais partícipes é um passo importante para o direito à verdade e à justiça das famílias de Marielle e Anderson, mas não resolve o caso, nem garante maior segurança aos demais defensores e defensoras de direitos humanos em atuação no Brasil, que é um dos países do mundo em que eles mais são assassinados. Defensores e defensoras de direitos humanos são pessoas que lutam por um mundo mais justo, que valorize a vida e a liberdade. Estes são direitos humanos previstos nos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte e precisam ser garantidos pelo Estado brasileiro. Enquanto não se descobrir quem são os autores intelectuais e quais foram suas motivações para o crime, a segurança de todos que lutam pela vida e pela liberdade estará em risco. O Estado deve investigar, processar, julgar, condenar e sancionar todos os responsáveis e envolvidos nesse crime. 

Por isso, mesmo distante mais de 800 dias de sua morte, continuamos a perguntar: Quem mandou matar Marielle, e por quê?

*Diogo Flora é advogado criminalista, professor, vice-presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ e consultor da Anistia Internacional.

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