“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”

Trechos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

 

Respeito. Dignidade. Liberdade. Palavras que devem fazer parte da vida de todas as pessoas. Lutar para que isso seja realidade é dever de cada um e cada uma de nós. Vida digna não é favor. É direito!

No mês do orgulho LGBTQI, convidamos integrantes do Afrobapho, coletivo da juventude negra LGBTQIA+ das periferias de Salvador (BA) e um dos nossos parceiros de mobilização de longa data, para falarem um pouco sobre a afirmação dos direitos da população LGBTQIA+. O grupo, que tem na expressão artística sua ferramenta de luta, respondeu a algumas perguntas da equipe e de ativistas voluntários e voluntárias da Anistia Internacional Brasil. Leia a seguir.

AI: O Coletivo Afrobapho usa performances artísticas como forma de expressão. Como o corpo pode ser um instrumento político e de afirmação de direitos?

CA: O corpo é um signo social e um receptáculo de ideologias e representações. A partir do momento que um corpo desvia de normas e lugares preestabelecidos pela lógica da cisbrancoheteronormatividade, ele se torna político pela dissidência. Esse corpo político se legitima principalmente através da tomada de consciência social, que reverbera em ações e mobilizações por direitos. Por isso, nós (do Coletivo Afrobapho) acreditamos na instrumentalização de nossos corpos dissidentes de raça, gênero e sexualidade, como uma ferramenta para pensar novas possibilidades de existir numa sociedade com equidade. Para tanto, o nosso corpo se torna um dispositivo que ativa as narrativas artísticas, com o objetivo de mobilizar e sensibilizar a sociedade sobre pautas sociais diretamente ligadas às nossas vidas. Com isso, falamos de racismo, LGBTfobia e direitos humanos, usando nossos corpos-arte e políticos como ponte para um diálogo direto com os mais diversos públicos.

AI: Há ainda pouca representatividade negra e LGBTQIA+ nos meios literários e midiáticos. Que autores e filmes vocês recomendariam em que há essa representatividade? (Otávio Z. Zanardi, Grupo de ativismo de Londrina – SP)

CA: Mesmo com o avanço de pautas raciais e LGBTIA+, através de ações dos movimentos negros, de gênero e sexualidade, ainda notamos uma baixa representatividade e proporcionalidade nos espaços de poder e de cultura popular.  As redes sociais com certeza tornaram possível que narrativas independentes da juventude negra e LGBTIA+ ganhassem o mundo. O próprio Coletivo Afrobapho é fruto disso. Entretanto, é notável o grande monopólio da branquitude cisheterossexual nos setores de arte, cultura, política, etc. O Afrobapho nasceu justamente dessa necessidade de visibilizar as produções de pessoas, coletivos e projetos negros LGBTIA+. Nossas referências eram mínimas e subalternizadas. Por isso debatemos também a necessidade de transformação cultural.

Hoje em dia podemos citar produções como a série “Pose”, que tem protagonismo de pessoas trans pretas; o filme Moonlight; as produções bibliográficas de autoras como Letícia Nascimento (Transfeminismo), Thiffany Odara (Pedagogia da Desobediência), dentre outras. Movimentos coletivos de criatividade como Batekoo, Coletividade MARSHA!, MOOC e o próprio Afrobapho… dentre outras referências que hoje em dia facilmente encontramos numa pesquisa nas redes sociais.

Poderiam comentar sobre a alegada existência da chamada “ideologia de gênero” e sobre o retrocesso nas políticas públicas que protegem e garantem os direitos universais às populações LGBTQIA+ (Janaina Cintia Alexandre da Silva, Grupo de ativismo de Campinas – SP)

CA: Vivemos no país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, que mina a existência de pessoas LGBTIA+, através de violências físicas e simbólicas. Se existe uma ideologia de gênero, é justamente a cisheteronormatividade, que atua de forma compulsória, subalternizando os corpos desviantes. Os movimentos de luta LGBTIA+ tem conseguido grandes conquistas pelo mundo, inclusive no Brasil. Entretanto, estamos resistindo em um contexto político no qual o conservadorismo cristão está em alta, produzindo violências e ataques aos nossos direitos básicos e às nossas vidas. É justamente esse movimento de retrocesso, alimentado por um viés racista, machista e LGBTfóbico que tem criado de forma desonesta um espantalho para definir a militância de gênero e sexualidade como “ideologia de gênero”. Por isso, é preciso que atuemos coletivamente contra essa onda conservadora, dialogando de forma direta e sensibilizadora com a sociedade, para que enfim haja a naturalização de nossas existências e o respeito às diferenças.

Vivemos no país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, que mina a existência de pessoas LGBTIA+, através de violências físicas e simbólicas. Se existe uma ideologia de gênero, é justamente a cisheteronormatividade, que atua de forma compulsória, subalternizando os corpos desviantes.

Em um caso recente na cidade de Campinas (SP), um aluno de uma escola pública foi vítima de manifestações de repúdio e preconceito por propor um trabalho sobre o mês do Orgulho LGBTQIA+. Poderiam comentar sobre situações como essa e, aproveitando a oportunidade, poderiam falar da relação da sociedade com crianças que não se enquadram no padrão heteronormativo? (Janaina Cintia Alexandra da Silva, Grupo de ativismo de Campinas – SP)

CA: Muitas pessoas pensam que o padrão cisheteronormativo só impacta na vida de corpos dissidentes de gênero e sexualidade. Mas a realidade é que as violências produzidas pela cisheteronormatividade também respingam em outros corpos sociais, como por exemplo, pessoas cisheterossexuais que não performam o padrão esperado de feminilidade/masculinidade. Esse caso de retaliação a uma criança que apenas sugeriu pautar o mês do ORGULHO LGBTIA+ na escola é um exemplo claro de como as normas cisgêneras e heteronormativas são nocivas, a ponto de condenar até quem tem qualquer tipo de empatia e respeito à diversidade. Até mesmo uma criança…Vivemos numa sociedade em que as crianças são compulsoriamente interpeladas a corresponderem às expectativas da binaridade de gênero e sexualidade. Qualquer indício comportamental que desvie essa criança desse padrão, torna-lhe alvo das violências simbólicas e físicas em torno de sua sexualidade – mesmo quando não seja o caso.

Poderiam explicar o que é o problema da solidão de pessoas LGBTQIA+ negras? (Otavio Z. Zanardi, Grupo de ativismo de Londrina – PR)

CA: Discutir sobre afetividades negras configura-se como um elemento importante no processo de descolonização do pensamento e, sobretudo, de resgate à humanidade que nos foi negada em séculos de escravidão. Afinal, durante o período de colonização, a branquitude não apenas aprisionou e escravizou corpos negros, como também destruiu suas subjetividades e afeições. A dinâmica de afetividade na vida de corpos negros dissidentes de gênero e sexualidade estrutura-se em questões interseccionais. Além de enfrentarem a imposição ideológica objetificadora – construída pelo racismo -, lidam também com a noção cisheteronormativa, que enxergam as suas relações como apenas lascivas e sexuais – desprovidas de sentimentos. Isso fica ainda mais tensionado, quando a performance de feminilidade é mais latente (falando aqui especificamente de corpos afeminados).

A sociedade nos tensiona a procurar uma única forma de amar, baseada no princípio de que uma pessoa é a salvação de nossas vidas. Mas nesse conto de fadas, não são todos os corpos que são interpelados. E quando esses corpos se afastam dos valores impostos pela sociedade, eles passam para a condição de abjetos. Numa sociedade em que o feminino é violentado, em que as mulheres negras são colocadas no lugar da objetificação e da servidão, ser um corpo dissidente sob o espectro de uma masculinidade hegemônica é tornar-se invisível para as afetividades. É viver em um ciclo de solidão. Mesmo nos amando o suficiente para entender o quanto somos fabulosas, a rejeição e o preterimento afetivo nos derrubam. Afinal, mesmo que nos neguem a humanidade: SENTIMOS. Nem sempre somos fortes, nem sempre queremos ser. Temos falado muito de solidão —o que é importante — mas não temos amado tanto os outros solitários. Embora seja um processo complexo, precisamos nos desconstruir também. Precisamos romper com o controle da branquitude sobre nossas subjetividades. Precisamos nos amar, precisamos de afeto entre nós.

Quais os desafios atualmente para gestão da diversidade nas organizações e corporações? O que podemos fazer para uma efetiva inclusão? Como lidar com esse desafio no dia-a-dia? (Érica Conceição Cardoso, Grupo de ativismo de Salvador – BA)

CA: Acredito que o grande desafio seja realmente pensar diversidade e inclusão de maneira mais elaborada e efetiva. Nos últimos anos, temos visto uma frequência na discussão sobre diversidade e representatividade nos meios sociais – o que se tornou um passo muito importante. Entretanto, as organizações, corporações e instituições no geral, tem utilizado essa abordagem para se promoverem enquanto inclusivas, mas sem fazer um debate aprofundado, nem mesmo realizado ações realmente eficientes. Para além de pensar em representatividade, é necessário discutir sobre proporcionalidade. Será que as ações de organizações que se propõe inclusivas e de apoio à diversidade, têm em seus espaços de trabalho e equipes uma quantidade proporcional de corpos dissidentes? Será que além de ações em datas marcantes de diversidade, tais instituições propõem formações contínuas sobre questões sociais? É importante romper com a superficialidade para avançarmos enquanto sociedade.

Para além de pensar em representatividade, é necessário discutir sobre proporcionalidade. Será que as ações de organizações que se propõe inclusivas e de apoio à diversidade, têm em seus espaços de trabalho e equipes uma quantidade proporcional de corpos dissidentes? Será que além de ações em datas marcantes de diversidade, tais instituições propõem formações contínuas sobre questões sociais? É importante romper com a superficialidade para avançarmos enquanto sociedade.

De que forma pessoas que não fazem parte do grupo LGBTQIA+ podem se engajar genuinamente na luta, sem se apropriar do lugar de fala? (Amanda, Grupo de ativismo de Pindamonhangaba – PR)

CA: Acreditamos que o primeiro movimento que pessoas cisheterossexuais devem fazer para ajudar no combate à LGBTfobia está no reconhecimento de privilégios e acessos sociais que a branquitude, a cisgeneridade e a heteronormatividade lhes permitem. Essa reflexão é essencial para o entendimento de seus papéis nessa luta. Além disso, é necessário naturalizar as existências de corpos dissidentes e compreender que nossas ações não são em busca de aceitação e muito menos é apenas sobre amor, mas sim sobre respeito e de direitos garantidos, inclusive o direito à vida. Dessa forma, pessoas que queiram se aliar aos movimentos de luta pelos direitos LGBTIA+ devem atuar em seus contextos, desconstruindo os estereótipos e preconceitos que são direcionados à nossa comunidade. Devem consumir, ler, se relacionar, visibilizar pessoas e pautas LGBTIA+.

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