Publicado originalmente em 30/08/2020 no El País

Nos últimos dias, temos ouvido de forma recorrente o discurso de que a polícia do Rio de Janeiro não pode agir diante da violência na cidade porque foi impedida pelo Supremo Tribunal Federal de “entrar nas favelas” (STF), a partir do acolhimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a chamada ADPF 635.

Essa é uma afirmação duplamente falsa! Alguns esclarecimentos sobre Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 635.

Primeiro porque identifica e reduz as favelas e seus moradores ao crime e, ao mesmo tempo, afirma as ações policiais, que mataram, só no ano passado pelo menos 1.814 pessoas, como necessárias e inevitáveis. Em segundo lugar, há clara intenção de desacreditar a determinação da Suprema Corte, fazendo um perigoso jogo de chantagem para colocar a população contra a decisão que julgou a ADPF 635.

O fato é que a decisão liminar do STF de suspender as operações policiais nas favelas durante o período da pandemia da COVID-19 já surtiu efeitos: houve uma redução de mortes da ordem de 73% em junho deste ano em comparação com o mesmo período de 2019.  Ao mesmo tempo, houve redução expressiva dos crimes contra o patrimônio (39%) e contra a vida (47%) em toda a Região Metropolitana do Estado. Esses  dados são fundamentais, pois significa a preservação de vidas, principalmente de pessoas negras e pobres, as maiores vítimas da política atual de segurança do governo do Estado do Rio de Janeiro, que desde o início apostou na violência e na eliminação, expressa na frase, “atirar na cabecinha”, de pessoas como forma de política de governo. Vale destacar que essa frase foi dita pelo governador ,Wilson Witzel, que hoje não é mais o governador do Estado do RJ.

O STF manteve as prerrogativas do governo do estado para cumprir seu dever de garantir a segurança de todos os cidadãos do Rio de Janeiro. O que não se admite mais é a utilização do aparato de segurança do Estado contra a população pobre e negra das favelas e toda a violência decorrente das operações policiais.

Por isso, mais uma vez, é preciso enfatizar que não cabe a narrativa feita por alguns setores da sociedade, como por parte da grande mídia, do governo e dos órgãos do aparato da segurança pública, a, de que estariam impedidos de garantir a segurança no estado em função da ADPF. Quem leu o texto da sentença do STF, sabe que lá está colocada a possibilidade de se fazer operações policiais em casos excepcionais, desde que devidamente justificadas ao Ministério Público do estado do Rio de Janeiro. O que espanta aqui é o fato de que essa medida dependa de uma sentença judicial provocada por intensa mobilização da sociedade, em especial dos moradores das favelas.

O artigo 144 da Constituição Federal diz que é dever do Estado garantir a segurança e preservar a vida dos cidadãos e é justamente esse preceito legal que precisa ser obedecido pelo governador e suas polícias. A questão central é que o modelo de segurança pública, hoje subordinada à ideia de enfrentamento armado e violência excessiva das forças policiais, descumpre o que manda a constituição.

Por isso, é urgente a criação de outra política de segurança pública para o Rio de Janeiro. Ela deve estar baseada no uso da inteligência, no respeito às leis, na garantia da vida de todos os cidadãos e no exercício democrático do controle e fiscalização das ações policiais por parte do Ministério Público, da Defensoria Pública e da sociedade.

Nesse sentido, a decisão liminar do STF, ao refrear as ações violentas da polícia durante a pandemia, é importante porque permite que o Estado e a sociedade possam repensar a segurança pública, pondo em xeque a ideia de que não há alternativas ao enfrentamento da violência para além do uso de mais violência. A drástica diminuição no número de mortes e de feridos, desde que a polícia foi obrigada a seguir novos protocolos de segurança e a restringir suas operações, prova que é possível construir outro modelo de segurança pública.

ASSINATURAS:

Anistia Internacional Brasil

Coletivo Papo Reto

Conectas Direitos Humanos

Coletivo Fala Akari

Centro de Justiça e Direito Internacional – CEJIL

Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos –  Geni/UFF

Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial

Instituto de Estudos da Religião – ISER

Instituto Marielle Franco

Justiça Global

Maré Vive

Movimento Mães de Manguinhos

Movimento Negro Unificado

Observatório de Favelas

Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência

Redes da Maré

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