A vida de milhões de mulheres e meninas de toda a América Latina está a mercê de sistemas de assistência à saúde que priorizam os estereótipos e doutrinas religiosas à vida da paciente.

Novo relatório da Anistia Internacional, chamado “O Estado como ‘Aparato Reprodutor’ de Violência Contra as Mulheres” analisa o acesso das mulheres aos serviços de saúde sexual e reprodutiva em oito países. O documento revela que o acesso a serviços básicos como a contracepção, o aborto sem riscos ou a esterilização normalmente depende do poder aquisitivo da paciente e das convicções religiosas e pessoais dos profissionais da saúde ou de cargos públicos.

“Infelizmente, para mulheres de toda a América Latina, receber tratamento médico para salvar a vida depende da boa vontade de um profissional da saúde ou de seu poder aquisitivo. Estabelecer a assistência médica dessa forma é indigno e absolutamente ilegal, e põe milhares de vidas em perigo”, afirmou Erika Guevara-Rosas, diretora do Programa da Anistia Internacional para a América.

“Desde El Salvador, onde o aborto está proibido inclusive nos casos nos quais a vida de uma paciente depende dele, até o México, onde as mulheres com HIV podem ser esterilizadas à força, mulheres e meninas de toda a região estão sofrendo abusos nas mãos dos próprios profissionais e de sistemas que supostamente devem protegê-las.”

“O que geralmente acontece é que eles não confiam que mulheres e meninas possam tomar suas próprias decisões no que se refere a sua sexualidade, sempre são os outros que tomam essas decisões por elas.”

“Tais normas e práticas absurdas demonstram que o governo não apenas tolera, mas que também promove a violência – às vezes equivalente a tortura– e a discriminação contra as mulheres.”

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O acesso ao aborto para salvar vidas

O aborto é proibido sem exceções em sete países da América, mesmo no caso da vida da mulher ou da menina depender dele: Chile, El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Suriname. Na maioria dos países restantes, embora seja legal, o acesso a um aborto para salvar a vida é muito difícil porque alguns profissionais da saúde se negam a praticá-lo por motivos ideológicos.

No Uruguai, por exemplo, onde o aborto foi legalizado em 2012, muitos profissionais da saúde se declararam “objetores de consciência” e se negaram a fazer interrupções.

Diante deste cenário, resta para muitas mulheres apenas a opção de realizar um aborto clandestino de risco, que foi a causa de pelo menos uma de cada 10 mortes maternas em toda a região em 2014.

Rosaura Arisleida Almonte Hernández, dominicana de 16 anos, morreu de leucemia em agosto de 2012 quando os médicos postergaram seu tratamento devido a sua gravidez e não lhe proporcionaram o melhor tratamento possível em seu estado. Rosaura solicitou várias vezes submeter-se a um aborto, o que teria permitido que recebesse o tratamento urgente que necessitava, mas foi negado, posto que o procedimento é proibido em todas as circunstâncias. Finalmente, Rosaura começou a receber tratamento para o câncer dias depois sofrer um aborto espontâneo, mas já era tarde para salvar sua vida.

Mesmo nos países onde o aborto é legal em determinadas situações, os médicos do sistema público de saúde se negam a interromper a gravidez devido às suas convicções pessoais. A única saída que resta a muitas mulheres é pagar por serviços privados de aborto, o que não está ao alcance de mulheres com poucos recursos econômicos.

No Paraguai, em 2015, as autoridades negaram reiteradamente a solicitação de interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos que havia engravidado após ser violentada. Ao não ter acesso a um aborto, a menina se viu obrigada a dar a luz.

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Esterilizações forçadas

A Anistia Internacional também documentou os casos de mulheres que foram obrigadas a submeterem-se a intervenções médicas contra sua vontade, e que sofreram zombarias e discriminação por viver com o HIV ao chegarem ao hospital para dar a luz.

Michelle, de 23 anos e mãe de dois filhos, é de Veracruz, estado ao oeste da Cidade do México, e soube que era soropositiva quando estava grávida de quatro meses, durante uma consulta médica.

No dia em que acudiu ao hospital para dar a luz encontrou um grande cartaz sobre sua cama que dizia “HIV”. Mais tarde, seu médico disse que devia submeter-se a uma operação para evitar uma gravidez futura. Michelle disse que não queria essa operação, mas os médicos não lhe deram atenção e fizeram uma operação de esterilização que a incapacitou de ter filhos permanentemente. Enquanto Michelle esteve no hospital, as enfermeiras não a tocaram. Em uma ocasião em que sofreu uma hemorragia, uma enfermeira entregou-lhe um pano e disse-lhe que ela mesma limpasse o sangue para evitar contágios.

Entre 1996 e 2000, as autoridades peruanas embarcaram em uma política atroz de esterilização de mulheres pobres dirigida a “combater a pobreza”. Muitas mulheres ainda sofrem as consequências desta esterilização em massa.

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Uma das afetadas por essa política é Esperanza, uma mulher do norte do Peru que agora tem 59 anos. Ela foi submetida à esterilização forçada em 1998.

Desde então sofre dores nas costas que às vezes são tão fortes que a impedem de trabalhar, e tem tido dificuldades para superar as sequelas psicológicas de ter sido esterilizada à força.

Anos mais tarde, as autoridades continuam sem proporcionar nem a ela nem a nenhuma das demais mulheres, uma indenização ou um tratamento que as ajude a superar o trauma sofrido.

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