A Anistia Internacional publica um “Plano de Ação” na véspera da cúpula extraordinária de chefes de governo da União Europeia, convocada para esta quinta-feira (23), que insta os líderes europeus a adotarem medidas imediatas e eficientes para acabar com a continuada catástrofe que está causando a morte de milhares de refugiados e migrantes no mar Mediterrâneo.
O plano, apresentado no relatório Europe’s sinking shame: The failure to save refugees and migrants at sea (A vergonha profunda da Europa: falha em salvar refugiados e migrantes no mar), divulgado nesta quarta-feira (22), documenta relatos de sobreviventes de naufrágios ocorridos desde o início de 2015. Nele também são detalhadas limitações e desafios que se colocam no âmbito das atuais operações de busca e salvamento na zona central do Mediterrâneo, e faz recomendações para a resolução do problema. O novo relatório da Anistia Internacional insta o início imediato de uma operação humanitária para salvar as vidas no mar, com uma frota adequada de barcos, apoio aéreo e outros recursos para patrulharem as rotas onde as vidas estão em risco.
“Os líderes europeus que se reunirão em Bruxelas têm uma oportunidade histórica de dar fim à espiral tragédia humana que aqui assistimos, com proporções do [naufrágio do] Titanic”, frisa John Dalhuisen, diretor da Anistia Internacional para a região da Europa e Ásia Central. “A negligência da Europa, que resulta em não salvar as vidas de milhares de migrantes e refugiados que enfrentam perigo no Mediterrâneo, é semelhante à de bombeiros que se recusam a salvar pessoas que saltam do inferno de uma torre em chamas. E a responsabilidade dos governos tem claramente de ser não apenas apagar o fogo mas também salvar aqueles que saltaram do parapeito”, reitera o diretor da organização de direitos humanos.
Na segunda-feira, 20 de abril, numa mudança da anterior política de negação, a UE deu um sinal de compromisso em intensificar a capacidade de buscas e resgates, que os Estados-membros têm agora de traduzir na adoção de ações concretas.
O novo relatório da Anistia Internacional demonstra que a decisão de suspender a operação humanitária da Marinha italiana, “Mare Nostrum”, no final de 2014, contribuiu para um aumento dramático das mortes de migrantes e refugiados no mar. Se os números dos naufrágios mais recentes forem confirmados, mais de 1.700 pessoas já terão morrido este ano – um número 100 vezes maior do que no mesmo período de 2014.
O mito de que a operação “Mare Nostrum” funcionava como um “fator de atração” é também desmontado pelas estatísticas, que mostram que o número de refugiados e migrantes que tentaram chegar à Europa por via marítima aumentou desde o fim daquela operação. De fato, o ano de 2015 já assistiu a números recorde de refugiados e migrantes tentando alcançar a Europa pelo mar, com mais de 24.000 pessoas chegando à Itália.
Após o fim da operação “Mare Nostrum”, os governos europeus instruíram a Agência Europeia de Fronteiras (Frontex) para iniciar a operação “Tritão”.
A “Tritão” não é uma operação de busca e salvamento. Ao contrário dos navios da “Mare Nostrum”, cuja área de ação se estendia por volta de 100 milhas náuticas ao Sul da ilha de Lampedusa, a “Tritão” está limitada à patrulha de fronteira até 30 milhas náuticas das costas da Itália e de Malta – muito aquém de onde a grande maioria dos barcos de migrantes e refugiados ficam em risco.
A Frontex admitiu que os recursos de que dispõem são “adequados ao mandato [da agência], que é o de controle das fronteiras da UE, e não o de policiar 2,5 milhões de quilômetros quadrados do Mediterrâneo”. Assim, as operações de busca e salvamento ficam na alçada dos barcos das patrulhas de guarda costeira.
O diretor dos Centros de Coordenação de Salvamento Marítimo da guarda costeira italiana, Giovanni Pettorino, revelou à Anistia Internacional que os seus barcos “não serão capazes de acudir a todos [os migrantes e refugiados em embarcações no Mediterrâneo], se continuarem a ser os únicos a meter-se às águas”.
Além disto, os navios mercantes desempenham um papel muito importante nas atuais operações de resgate, apesar de não estarem concebidos, nem equipados, nem tão pouco as suas tripulações treinadas para fazerem salvamentos no mar destas proporções. Mesmo com os esforços feitos por todos os que estão neste cenário trágico, salvando as vidas de dezenas de milhares de pessoas só este ano, não se pode esperar que consigam dar solução à magnitude da atual crise humanitária.
Os números de afogamentos
As estimativas sugerem que mais de 800 migrantes e refugiados se afogaram em 18 de abril de 2015 durante uma tentativa de resgate feita por um navio mercante. O bote em que viajavam virou-se conforme as pessoas que se encontravam a bordo se moveram todas para um dos lados da embarcação, segundo foi reportado pela guarda costeira. Este relato ecoa o que foi descrito por sobreviventes de outras tragédias ouvidos pela Anistia Internacional para este relatório.
Mohammad, um palestino de 25 anos que vinha do Líbano, contou que, em 4 de março de 2015, o barco em que se encontrava com cerca de 150 pessoas virou quando um grande rebocador se aproximou para os ajudar. “Eles atiraram uma escada de corda… muitos tentaram alcançá-la e o barco virou. Eu caí na água. Immirdan, uma mulher síria, morreu com o filho de um ano”.
A indústria naval já reconheceu que salvamentos de larga escala por navios mercantes comportam muito mais riscos, o que reforça ainda mais a necessidade de uma operação profissional humanitária.
Em 31 de março de 2015, os representantes das principais associações europeias e globais da indústria naval e sindicatos da marinha mercante descreveram a situação atual como “insustentável” e pediram aos países europeus que aumentem os recursos e apoio às operações de busca e salvamento. Num comunicado conjunto disseram ser “inaceitável que a comunidade internacional esteja cada vez mais a depender dos navios mercantes e navegantes marítimos para levarem a cabo mais salvamentos de larga escala”.
Em resposta a um pedido de socorro de 8 de fevereiro de 2015, a guarda costeira italiana enfrentou duras condições de alto mar e temperaturas geladas para salvar 105 pessoas de um bote de borracha atulhado. Este bote era de um grupo de quatro embarcações que tinham partido da Líbia no dia anterior e encontraram dificuldades no mar. Mais de 330 refugiados e migrantes morreram nesse dia. Além de dois navios mercantes que se encontravam então na área, apenas a guarda costeira italiana esteve disponível para prestar ajuda.
Mas as instalações dos dois barcos de patrulha foram insuficientes para provir aquecimento e abrigo às pessoas que tinham sido resgatadas do bote e 29 delas morreram de hipotermia já a bordo das embarcações da guarda costeira. O enfermeiro Salvatore Caputo, que estava num dos barcos de patrulha da guarda costeira italiana, recordou à Anistia Internacional que “para manter [os refugiados e migrantes] quentes, alternávamos aqueles que ficavam dentro da cabine, mas era tudo tão difícil… Fiquei furioso, salvá-los das águas e depois vê-los morrer daquela maneira”.
Prontos para agir
Massimiliano Lauretti, capitão da Marinha italiana, afirmou à Anistia Internacional que uma operação humanitária pode ser organizada em apenas alguns dias se for dada uma ordem nesse sentido.
“A Marinha italiana está pronta para agir. Temos procedimentos já bem ensaiados. Temos desenvolvido a nossa experiência. Se nos for pedido, podemos recomeçar uma operação humanitária num prazo muito curto, em umas 48 a 72 horas, mais ou menos.”
A Anistia Internacional insta todos os chefes de Estado e de governo europeus que participam na quinta (23) da cúpula extraordinária de Bruxelas a estabelecerem imediatamente uma operação concreta e eficiente para salvar as vidas no mar. Os líderes europeus têm de autorizar prontamente a mobilização de meios navais e aéreos suficientes para as principais rotas de migração com o objetivo de salvar vidas. E até que isto seja executado, os governos europeus têm de urgentemente providenciar apoio financeiro e logístico a Itália e Malta para que estes países consigam aumentar a sua capacidade de busca e salvamento no Mediterrâneo.
“A conveniência política conduziu à falácia de que não fazer nada irá parar o fluxo de pessoas. Mas os acontecimentos recentes mostraram que isso não pode estar mais longe da verdade, e essa argumentação pode trazer consequências catastróficas”, frisa o diretor da Anistia Internacional para a região da Europa e Ásia Central.
“Nesta quinta-feira, os líderes europeus podem finalmente agir de forma muito concreta. Não pode haver mais desculpas para ainda mais mortes que são evitáveis.”
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