Mulheres, homens e crianças da etnia rohingya tentando fugir de perseguição em Myanmar por via marítima no início de 2015 foram mortas ou brutalmente espancadas nas mãos do tráfico de pessoas, ameaçados caso as famílias não pagassem resgastes e mantidos em condições desumanas, revela relatório da Amnistia Internacional, com a aproximação da nova “época de navegação” no Sudeste Asiático.

Deadly journeys: The refugee and trafficking crisis in Southeast Asia (Viagens mortais: refugiados e a crise de tráfico de pessoas no Sudeste Asiático), emitido esta quarta-feira, 21 de outubro, se baseou em entrevistas com mais de 100 refugiados da etnia rohingya (minoria muçulmana em Myanmar), na maioria vítimas de tráfico humano, e muitos deles crianças, que conseguiram chegar à Indonésia após fugirem de Myanmar ou Bangladesh através do mar de Andaman.

Com o fim das monções e a nova “época de navegação”, é provável que milhares de pessoas tentem fazer a travessia marítima. A Anistia Internacional pede que os governos da região reforçem com urgência as suas respostas à crise.

“Os abusos físicos diários que os rohingya enfrentam quando estão presos em barcos na baía de Bengala e no mar de Andaman são quase horríveis demais para serem expressos em palavras. Essas pessoas conseguiram fugir de Myanmar, mas acabaram trocando um pesadelo por outro”, avalia a pesquisadora da Anistia Internacional Anna Shea, perita em questões de refugiados.

“A verdade chocante é que as pessoas com quem falamos são os ‘sortudos’ que conseguiram chegar à terra – muitos, inúmeros, outros morreram no mar ou foram traficados para campos de trabalhos forçados. Os governos têm que fazer mais para evitar que esta tragédia humana se repita”, destaca.

Os acontecimentos horríveis de maio de 2015 – desencadeados por uma operação da Tailândia contra o tráfico humano e o subsequente abandono de pessoas à sua própria sorte no mar pelos traficantes – deixaram milhares de refugiados e migrantes à deriva ao longo de semanas, desesperados, sem comida, água ou assistência médica.

As Nações Unidas estimam que pelo menos 370 pessoas tenham morrido nas águas do Sudeste Asiático entre janeiro e junho de 2015, mas a Anistia Internacional acredita que o número verdadeiro é muito mais alto.

Testemunhas oculares entrevistadas pela Anistia descrevem dezenas de grandes barcos repletos de refugiados e migrantes em circunstâncias similares, mas apenas cinco embarcações alcançaram a costa da Indonésia e da Malásia, de acordo com fontes das Nações Unidas. Centenas – senão milhares – de pessoas continuam desaparecidas e podem ter morrido durante a viagem ou sido vendidas para campos de trabalhos forçados.

Mortes e espancamentos para extorsão de dinheiro

Muitos rohingya contaram ter visto tripulantes dos barcos matarem pessoas porque os familiares desses refugiados e migrantes não pagaram o resgate que estavam exigindo. Algumas foram baleadas por traficantes a bordo dos barcos, outras atiradas ao mar para se afogarem. Outras ainda morreram por falta de comida e de água ou de doença.

Os pesquisadores da Anistia Internacional ouviram muitos refugiados contarem como tinham sido mantidos em barcos enormes durante meses a fio e brutalmente espancados pelos traficantes que contatavam seus familiares exigindo resgates. Uma moça de 15 anos relatou que os tripulantes do barco em que se encontrava telefonaram para o pai dela, em Bangladesh, e o fizeram ouvir os seus gritos enquanto a espancavam, exigindo que pagassem um resgate de cerca de 1.700 dólares.

Praticamente todas as mulheres, homens e crianças rohingya asseguraram à Anistia Internacional que tinham sido espancados ou que testemunharam outros serem vítimas de graves abusos físicos. Houve pessoas espancadas com bastões de metal e de plásticos – em alguns casos por horas a fio – apenas por pedirem comida aos tripulantes dos barcos, por mudarem de lugar ou por pedirem para ir ao banheiro. Muitas ficaram com cicatrizes físicas ou psicológicas permanentes devido à violência a que foram sujeitas.

Esses espancamentos brutais eram sistemático, numa rotina assustadora. Um rapaz rohingya de 15 anos contou aos pesquisadores da Anistia Internacional: “Pela manhã nos batiam três vezes. À tarde nos batiam três vezes. E à noite nos batiam nove vezes”.

Perseguidos no país natal

O desespero dos muçulmanos rohingya tem origem nos anos de perseguição e discriminação de que são alvo em Myanmar, onde essa população não tem cidadania segunda as leis do país. Ondas de violência contra os rohingya, a mais recente tendo eclodido em 2012, têm forçado dezenas de milhares de pessoas a se mudarem para campos de refugiados superlotados onde vivem em condições desesperadoras.

Algumas pessoas relataram à Anistia que foram raptadas por traficantes em Myanmar ou Bangladesh, outras, que lhes foi prometido passagem segura para a Malásia a troco de dinheiro – uma tática usada frequentemente pelos traficantes que visam coagir as pessoas a trabalhos forçados.

“Os rohingya estão tão desesperados que vão continuar a arriscar a vida no mar até que sejam resolvidas as causas que estão na origem desta crise. O governo de Myanmar tem que pôr fim imediatamente à perseguição aos rohingya”, disse Anna Shea.

Condições desumanas

Durante as travessias marítimas, os rohingya são mantidos em condições absolutamente desumanas e degradantes. Os barcos viajam superlotados, e as pessoas são obrigadas ficar sentadas em posições extremamente desgastantes, em alguns casos ao longo de meses. Um habitante local, que ajudou a resgatar pessoas de barcos ao largo da costa da província indonésia de Aceh, descreveu que o mau cheiro era tão intenso que os voluntários de salvamento não conseguiam sequer subir a bordo.

Faltava comida e água potável, e as rações nos barcos normalmente não iam além de uma pequena tigela de arroz por dia. Muitos dos rohingya que conseguiram chegar à Indonésia estavam profundamente fracas, com sinais de inanição e desidratação, dificuldades em caminhar após terem passado tanto tempo em posições de desgaste físico, e sintomas de bronquite e gripe.

Condições na Indonésia

Em maio de 2015, a Indonésia, Malásia e Tailândia começaram a empurrar de volta ao mar alto os barcos que se aproximavam das suas zonas costeiras, impedindo o desembarque em terra de milhares de passageiros desesperados. Sob uma enorme onda de críticas internacionais, a Indonésia e a Malásia acabaram por concordar em permitir a entrada temporária de um certo número de refugiados, na condição de que outros países os recebam até maio de 2016.

A Indonésia, em particular, canalizou recursos para alojar centenas de pessoas vulneráveis em Aceh, e tem trabalhado para providenciar a assistência essencial a esses refugiados com a cooperação da sociedade civil local e as agências internacionais. Mas questões muito graves ainda não foram respondidas, pois não parece haver solução a longo prazo. O governo indonésio ainda não esclareceu se essas pessoas vão poder continuar no país após maio de 2016.

Recomendações da Anistia Internacional

“Se não houver cooperação por parte dos governos no combate ao tráfico de pessoas, algumas das mais vulneráveis e desesperadas populações do Sudeste Asiático vão voltar a sofrer graves violações de direitos humanos”, assegura Anna Shea.

Ela ainda aponta que “os governos têm que garantir que as iniciativas tomadas contra os traficantes não coloquem em risco nem as vidas nem os direitos humanos dos refugiados, que foi exatamente o que aconteceu em maio de 2015. Eles têm que agir rapidamente para pôr em funcionamento operações de buscas e salvamento no mar.”

A organização pede que os países do Sudeste Asiático tomem providências urgentes e não esperem que uma nova tragédia no mar para agir.