A má regulamentação dos fluxos de armas para o Iraque durante décadas, unida à falta de controle sobre o terreno, proporcionaram ao grupo autodenominado Estado Islâmico um grande arsenal  mortífero que está sendo utilizado para cometer crimes contra a humanidade e crimes de guerra em escala massiva no Iraque e na Síria, afirma a Anistia Internacional em um novo relatório publicado nesta segunda (7).

A partir das análises realizadas por peritos de milhares de vídeos e imagens verificadas, o informe, intitulado “Fazendo o balanço: Armar o Estado Islâmico” explica como os combatentes do Estado Islâmico utilizam armas – a maioria procedente de saques dos arsenais do exército iraquiano – que foram fabricadas e desenhadas em mais de duas dezenas de países, entre eles, Rússia, China, Estados Unidos e países da UE.

“A numerosa e variada gama de armas que o grupo armado autodenominado Estado Islâmico está utilizando é um caso de manual de como o comércio irresponsável de armas dá margem à perpetração de atrocidades em massa”, disse Patrick Wilcken, pesquisador sobre Controle de Armas, Comércio de Segurança e Direitos Humanos da Anistia Internacional.

“A má regulamentação e a falta de supervisão dos imensos fluxos de armas para o Iraque nas últimas décadas proporcionaram ao Estado Islâmico e a outros grupos armados uma excelente conjuntura para obter um sucesso sem precedentes à potência armamentista.”

Ao tomar Mossul, a segunda cidade do Iraque, em junho de 2014, os combatentes do Estado Islâmico se viram inesperadamente com armas de fabricação internacional do arsenal iraquiano, entre elas, armas e veículos militares fabricados nos Estados Unidos que utilizaram para controlar outras zonas do país, com devastadoras consequências para a população covil que as habitava.

A ampla variedade de tipos de armamentos tomados e adquiridos ilegalmente permitiu que o Estado Islâmico realizasse uma terrível campanha de abusos. Homicídios ilegítimos, estupros, tortura, sequestro e tomada de reféns – frequentemente na mira de pistola – obrigaram centenas de milhares de pessoas a fugir e converter-se em deslocados internos ou refugiados.

Uma variedade estonteante

A variedade e a amplitude do arsenal do Estado Islâmico refletem décadas de transferências irresponsáveis de armas ao Iraque. Isso se viu agravado pelos diversos fracassos na hora de  administrar  as importações de armas e implantar mecanismos que evitariam usos finais inadequados durante a ocupação dirigida pelos Estados Unidos a partir de 2003. A este problema se soma os poucos controles estritos dos arsenais do exército e a corrupção endêmica dos sucessivos governos iraquianos.

O relatório documenta o uso por parte do Estado Islâmico de armas e munições procedentes de ao menos 25 países, embora uma grande proporção tenha sido originalmente de armas fornecidas ao exército iraquiano pela Rússia, Estados Unidos e países do antigo bloco soviético. Estes fluxos de armas foram financiados com diversos tanques de petróleo, contratos do Pentágono e doações da OTAN. A maior parte destas armas foram tomadas ou desviadas dos arsenais do exército iraquiano.

Entre as armas avançadas com que o Estado Islâmico conta, há sistemas portáteis de defesa antiaérea (MANPADS), misseis guiados antitanques e veículos blindados de combate, assim como rifles de assalto como a série AK, de fabricação russa, e os M16 e Bushmaster norte-americanos.

A maioria das armas convencionais utilizadas pelos combatentes do Estado Islâmico datam do período compreendido entre a década de 1970 e a de 1990, e incluem pistolas, revólveres e outras armas pequenas, metralhadoras, armas antitanque, morteiros e artilharia. São frequentes os rifles do tipo Lakashnikov da época da União Soviética, sobretudo de fabricantes russos e chineses.

“Isso volta a demonstrar que as medidas de avaliação e mitigação de riscos na exportação de armas a regiões instáveis exigem uma análise exaustiva e de longo prazo, que deverá incluir avaliar se  as unidades do exército e das forças de segurança são capazes de controlar realmente os arsenais e cumprem as normas do direito internacional humanitário e dos direitos humanos”, disse Patrick Wilcken.

Os combatentes do Estado Islâmico e outros grupos armados também recorreram à fabricação de seu próprio armamento improvisado em oficinas. Exemplos desta prática são morteiros e foguetes, granadas de mão improvisadas, dispositivos explosivos improvisados (bombas caseiras), tais como carros-bomba e armadilhas, inclusive munição de fragmentação reutilizada, uma arma proibida internacionalmente. Em alguns casos, os dispositivos explosivos constituem minas terrestres proibidas pela Convenção sobre a Proibição de Minas Antipessoal.

Cadeias de fornecimento

Fazendo balanço abrange a longa história da proliferação de armas no Iraque e as complexas cadeias de fornecimento que muito provavelmente fizeram com que algumas das armas mas recentes tenham ido parar nas mãos do Estado Islâmico.

O arsenal do exército iraquiano aumentou no final da década de 1970 e começo da de 1980, especialmente em torno da guerra Irã-Iraque. Este foi um momento decisivo para o desenvolvimento do moderno mercado global de armamento, quando pelo menos 34 países fornecem armas ao Iraque e 28 deles também as forneciam ao Irã. Entretanto, o então presidente do Iraque, Sadam Husein supervisionou o desenvolvimento de uma sólida indústria armamentista nacional que fabricava armas pequenas, projéteis de morteiro e bombas de artilharia.

Após a invasão do Kuwait pelo Iraque, em 1990, o embargo de armas da ONU fez diminuir as importações até 2003, mas durante a invasão dirigida pelos Estados Unidos e depois  dela, o Iraque voltou a inundar-se de importações de armas. Muitas delas nunca foram asseguradas e verificadas adequadamente pelas forças da coalizão dirigida pelos Estados Unidos e as forças armadas iraquianas constituídas. Centenas de milhares de armas passaram a ter paradeiro desconhecido e ainda não se sabe nada sobre elas.

Iniciativas mais recentes de reconstruir e reequipar o exército iraquiano e forças associadas voltou a gerar um fluxo em massa de armas para o Iraque. Entre 2011 e 2013, os Estados Unidos firmaram contratos no valor de milhões de dólares em tanques 140MM1M1 Abrams, aviões de combate F16, unidades portáteis Stinger 681, baterias antiaéreas Hawk e outros materiais. Em 2014, os Estados Unidos haviam fornecido ao governo iraquiano armas pequenas e munição no valor de mais de 500 milhões de dólares.

A corrupção endêmica do exército iraquiano, assim como a falta de controles estritos sobre os arsenais e o seguimento de armas implicaram em perigo constante de que tais armas se deviem a grupos armados, inclusive o Estado Islâmico.

Evitar a proliferação de armas

Os Estados podem aprender com as sucessivas falhas do passado e tomar medidas urgentes para evitar futura proliferação de armas no Iraque, Síria e outros países e regiões instáveis.

A Anistia Internacional pede a todos os Estados que adotem um embargo total sobre as forças governamentais sírias, assim como sobre os grupos armados de oposição implicados do cometimento de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e outros abusos graves contra os direitos humanos.

Também devem adotar uma norma de “presunção de negação” das exportações de armas ao Iraque, o que significa que as transferências somente poderão ser realizadas após uma estrita avaliação de risco. As unidades do exército ou a polícia do Iraque com as que se fazem exceções deverão demonstrar primeiro que respeitam de forma estrita e constante o direito internacional humanitário e os direitos humanos, e que dispõem dos mecanismos de controle necessários para garantir que as armas não serão desviadas a grupos armados.

Ainda, qualquer Estado que esteja considerando realizar uma possível transferência de armas às forças armadas do Iraque deve, primeiro, realizar uma sólida inversão em controles prévios e  posteriores à entrega, assim como em uma formação e um acompanhamento que cumpram  as normas internacionais para a administração e o uso de tais armas.

Todos os países que ainda não o fizeram, devem aderir ao Tratado sobre o Comércio de Armas ou ratifica-lo imediatamente. Um dos objetivos deste tratado é “prevenir e eliminar o tráfico ilícito de armas convencionais e […] evitar seu desvio”. O Tratado também contém disposições cuja finalidade é deter as transferências de armas quando há um risco claro de que possam ser utilizadas para combater violações graves do direito internacional humanitário e dos direitos humanos.

“O legado da proliferação e o abuso das armas no Iraque e seus arredores já destruiu as vidas e os meios de subsistência de milhões de pessoas, e continua constituindo uma ameaça. As consequências de transferir irresponsavelmente ao Iraque e Síria armas que posteriormente caem nas mãos do Estado Islâmico devem ser um alerta para os exportadores de armas em todo o mundo”, disse Patrick Wilcken.