O sistema de justiça criminal da China ainda depende grandemente de confissões forçadas, obtidas por meio de tortura e maus-tratos, e os  advogados que persistem em dar queixa de abusos, muitas vezes são ameaçados, assediados, ou mesmo detidos e torturados, disse a Anistia Internacional em um novo relatório divulgado nesta quarta-feira (12).

O relatório, No End in Sight [Sem Fim à Vista], documenta como as reformas da justiça penal saudadas pelo governo chinês como avanços dos direitos humanos, na realidade  pouco fizeram para mudar a prática arraigada de torturar suspeitos para obter confissões à força. As tentativas dos advogados de defesa para dar entrada com queixa ou investigar alegações de tortura continuam a ser sistematicamente abortadas pela polícia, promotores e tribunais.

“Em um sistema onde até mesmo os advogados podem acabar sendo torturados pela polícia, que esperança podem ter os réus comuns?”, disse Patrick Poon, pesquisador da Anistia Internacional da China.

“Um sistema de justiça que não é independente, onde a polícia continua sendo poderosa acima de tudo, e onde não existe nenhum recurso quando os direitos dos réus são violados, vai fazer pouco para parar o flagelo da tortura e dos maus-tratos na China. Se o governo levar a sério melhorar os direitos humanos, deve começar a fazer com que os órgãos policiais prestem contas quando cometem abusos “.

Advogados por toda a China contaram à Anistia Internacional sobre a retaliação que sofrem quando desafiam as autoridades policiais. Apontaram as principais falhas no sistema judicial que permite que policiais, promotores, e outros funcionários contornem as novas salvaguardas destinadas a evitar confissões forçadas que levam a condenações injustas. Juristas chineses estimam que menos de 20% de todos os réus criminais têm representação legal.

“O governo parece mais preocupado com o possível constrangimento que condenações injustas pode causar, em vez de coibir a tortura na prisão”, disse Patrick Poon.

“Para a polícia, a obtenção de uma confissão ainda é a maneira mais fácil de garantir uma condenação. Enquanto os advogados não puderem fazer o seu trabalho sem medo de represálias, a tortura continuará endêmica na China.”

O relatório documenta tortura e maus-tratos em prisão preventiva, como espancamentos pela polícia ou por outros detentos, com conhecimento dos oficiais ou sob suas ordens. Ferramentas de tortura descritas incluem cadeiras de ferro de imobilização, bancos tigre – em que as pernas são fortemente amarradas a um banco, com tijolos gradualmente colocados sob os pés da vítima, forçando as pernas para trás – assim como longos períodos de privação de sono e de comida e água.

O histórico da China sobre a tortura está para ser analisado por um comitê especializado anti-tortura das Nações Unidas em Genebra na próxima semana, e em vista disso o governo afirmou que as autoridades “sempre encorajaram e apoiaram os advogados no desempenho de suas funções” e negou qualquer “retaliação”.

Tang Jitian, promotor e ex-advogado, em Pequim, disse à Anistia Internacional que foi torturado por policiais locais em março de 2014, quando ele e três outros advogados investigavam uma alegada tortura em um centro de detenção secreto – conhecido como “prisão negra” – em Jiansanjiang, nordeste da China.

“Fui amarrado a uma cadeira de ferro, esbofeteado, chutado nas pernas, e golpeado na cabeça com tanta força com uma garrafa de plástico cheia de água que desmaiei”, disse ele.

Tang Jitian depois foi encapuzado, algemado por trás e suspenso do chão pelos pulsos, enquanto a polícia o espancava.

Yu Wensheng, advogado em Pequim, foi preso em 13 de outubro de 2014 e detido por 99 dias pela polícia. Ele contou à Anistia Internacional que foi interrogado umas 200 vezes, com 10 policiais encarregados de interrogá-lo em três turnos todos os dias. Seus pulsos estavam algemados atrás das costas com as algemas deliberadamente apertadas demais.

“Minhas mãos estavam inchadas e sentia tanta dor que eu não queria mais viver. Os policiais repetidamente puxavam as algemas e eu gritava “, disse ele.

Detenção secreta e tortura

Especialistas legais disseram à Anistia Internacional que a extração de confissões através de tortura continua radicada nas prisões preventivas, especialmente em casos políticos, como com dissidentes, minorias étnicas ou pessoas ligadas a atividades religiosas.

O relatório mostra que, nos últimos dois anos, as autoridades fizeram uso crescente de uma nova forma de detenção incomunicável chamada de “vigilância residencial em um local determinado”, que foi oficializada por lei em 2013, quando entraram em vigor   as revisões do Direito Processual Penal da China.

Sob este sistema, pessoas suspeitas de terrorismo, grandes subornos e crimes contra a segurança do Estado, podem ser detidas fora do sistema de detenção formal em um local não revelado por até seis meses, sem contato com o mundo exterior, deixando o detido em grave risco de tortura e outros maus-tratos.

Doze advogados e ativistas apanhados na atual coibição dos direitos humanos e ativistas legais estão atualmente detidos em “vigilância residencial em um local designado” acusados por crimes contra segurança nacional. A Anistia Internacional considera todos eles em sério risco de tortura e maus-tratos e pediu ao governo chinês para libertá-los e retirar todas as acusações contra eles.

Resistindo à Reforma

Apesar de várias séries de reforma desde 2010, a definição de tortura sob a lei chinesa continua a ser inadequada e em violação do direito internacional. A lei chinesa ainda proíbe apenas determinadas práticas de tortura, como “o uso da violência para obter uma declaração de testemunha” e por determinados agentes da lei, sendo que outros autores só podem ser acusados de acessórios. A tortura mental não é explicitamente proibida na lei chinesa como é exigido pelo direito internacional.

A maioria dos advogados entrevistados para este relatório mencionou a falta de independência judicial e o poder preeminente das agências de segurança pública como um dos principais obstáculos para obter justiça em alegações de tortura. Comitês políticos e jurídicos locais, constituídos de oficiais locais do Partido Comunista, exercem uma influência considerável na determinação do resultado de processos judiciais politicamente delicados. Quando uma comissão quer uma convicção, as alegações de tortura são ignoradas pelo tribunal e os responsáveis raramente s ã o responsabilizados.

Os advogados que falaram com a Anistia Internacional denunciaram a continuada impossibilidade de impetrar queixas de tortura no tribunal, conseguir investigações genuínas pelos procuradores do Estado, muito menos por organismos independentes, ou que confissões forçadas sejam excluídas como provas no julgamento.

“As autoridades locais e a polícia continuam a manipular o sistema de justiça penal da China. Apesar dos melhores esforços dos advogados de defesa, muitas alegações de tortura são simplesmente ignoradas por uma questão de conveniência política “, disse Patrick Poon.

“A polícia exerce grande poder sem freios, com o resultado de que as medidas para conter a tortura não têm o devido impacto.”

Tortura e “provas” ilegais

Na tentativa de analisar a maneira com que os tribunais na China lidam com alegações de extrair “confissões” por meio de tortura, depois da introdução de reformas destinadas a excluir provas contaminadas por tortura, a Anistia Internacional revisou centenas de documentos judiciais que foram disponibilizados no banco nacional   de dados online do Tribunal Supremo Popular da China.

De uma amostra de 590 casos em que houve alegações de tortura, confissões forçadas foram excluídos em apenas 16 casos, com um caso levando à absolvição e o resto acabando em condenações com base em outras provas. Estes baixo número de casos em que as provas obtidas mediante tortura foram excluídas, parece corroborar as alegações dos advogados de que confissões forçadas   continuam a ser apresentadas como prova no tribunal, e que as provas obtidas ilicitamente não são excluídas pelos juízes.

Sob a lei internacional e doméstica da China o ônus da prova cabe ao Ministério Público que deve   mostrar que a prova foi obtida legalmente. Na prática, porém, os tribunais habitualmente rejeitam as alegações de tortura se o réu não conseguir prová-las.

O relatório apresenta uma série de recomendações detalhadas. Em particular, a fim de acabar com o uso da tortura e de outros maus-tratos no sistema de justiça penal da China, a Anistia Internacional apela ao governo chinês que:

– Garanta que advogados e ativistas jurídicos possam realizar o seu trabalho sem assédio, intimidação, restrições arbitrárias, e medo de detenção, tortura e outros maus-tratos ou processo penal.

– Garanta que nenhuma declaração obtida sob tortura ou outros maus-tratos seja usada como prova em qualquer processo.

– Harmonize a lei, políticas e práticas na China em consonância com a proibição absoluta de tortura e de outros maus-tratos sob a lei internacional.