O Boko Haram matou quase 400 civis no norte de Camarões enquanto que a dura resposta das autoridades de segurança e as desumanas condições de reclusão também provocaram dezenas de morte, afirmou a Anistia Internacional em um relatório.

Baseando-se em visitas de investigação realizadas em 2015, o relatório Human rights under fire: attacks andviolations in Cameroon’s struggle with Boko Haram documenta como o Boko Haram matou ao menos 380 civis desde janeiro de 2014.

Em sua resposta, as forças de segurança camaronesas invadiram povoados, destruindo residências, matando civis e detendo mais de 1.000 suspeito, algumas de apenas cinco anos de idade. Não foram investigados de forma efetiva incidentes graves, entre eles um no qual pelo menos 25 pessoas morreram sob custódia. Mais de 130 pessoas continuam desaparecidas.

“À medida que o Boko Haram levou sua violência a Camarões, a população civil está cada vez mais na linha de fogo. Com os homicídios indiscriminados, a destruição de bens civis, o sequestro de pessoas e o uso de meninos e meninas como agressores suicidas, o Boko Haram cometeu crimes de guerra e causou medo e sofrimento indescritíveis à população civil”, afirmou Alioune Tine, diretor da Anistia Internacional para a África Ocidental e Central.

“Ao mesmo tempo, apesar de ter proporcionado uma proteção muito necessária à população civil, a resposta das forças de segurança camaronesa também esteve envolvida em graves violações de direitos humanos. As forças de segurança de Camarões causaram a morte de civis mediante homicídios ilegítimos ou uso excessivo da força. Pessoas foram detidas arbitrariamente e muitas delas foram reclusas em condições desumanas, o que provocou dezenas de mortes.”

Crimes de guerra cometidos pelo Boko Haram

Desde meados de 2014, os combatentes do Boko Haram atacaram dezenas de cidades e povoados na região mais setentrional de Camarões, onde mataram e sequestram civis, incendiaram centenas de casas e saquearam gado e outras propriedades.

Em uma reunião realizada em 15 de outubro de 2014, combatentes do Boko Haram mataram a tiros ou degolaram pelo menos 30 pessoas na cidade fronteiriça de Amchide. Uma testemunha ocular contou à Anistia Internacional: “Vi combatentes do Boko Haram degolarem brutalmente pelo menos dois vizinhos meus”.

Em 17 de abril de 2015, mas de 100 combatentes do Boko Haram tomaram de assalto a cidade de Bia e mataram 16 civis, entre eles dois menores de idade.

Uma testemunha relatou à Anistia Internacional como os insurgentes colocaram fogo em mais de 150 casas: “Em um bairro atrás do ouro, mataram as pessoas e incendiaram tudo”.

Desde julho de 2015, uma série de atentados suicidas com bomba, nos quais foram utilizadas meninas de apenas 13 anos, cobraram mais de 70 vidas. Um total de 13 civis morreu e mais de 100 ficou ferido em três ataques suicidas à bomba perpetrados em Maroua nos dias 22 e 23 de julho de 2015.

Dura resposta das forças de segurança

Desde 2014, as forças de segurança camaronesas detiveram e aprisionaram mais de 1.000 pessoas suspeitas de apoiar o Boko Haram. A maioria das detenções ocorreu em operações em massa de “filtragem” ou em buscas de “cerque e procure” nas quais as forças de segurança detiveram dezenas, às vezes centenas de homens e meninos. A maioria deles está presa em condições atrozes na prisão de Maroua. Somente entre março e maio de 2015, a superpopulação, a carência de instalações sanitárias e a deficiente atenção à saúde ocasionaram a morte de pelo menos 40 presos.

Quando a Anistia Internacional visitou a prisão de Maroua, em maio de 2015, não havia água corrente e se dispunha de menos de 20 latrinas para mais de 1.200 pessoas. Na visita ao hospital onde estavam os presos enfermos no mesmo período, os pesquisadores da Anistia Internacional comprovaram que pacientes com grave má nutrição estavam alojados em uma sala completamente imunda, na qual pelo menos três detidos semidesnudos dormiam no chão, um deles entre seus próprios excrementos. Foram iniciados trabalhos para aumentar a capacidade carcerária, mas se passarão muitos meses até a sua conclusão.

Ao realizar operações de segurança, os militares usaram força excessiva ou meios letais. Em uma operação de cerco e registro, ao menos oito pessoas – entre elas, um menor de idade – foram mortas e mais de 70 edifícios foram incendiados nos povoados de Magdeme e Doublé em 27 de dezembro de 2014.

Uma testemunha contou o seguinte à Anistia Internacional: “Os soldados dispararam dentro da casa. Minha irmã e sua filha de sete anos morreram enquanto estavam escondidas embaixo da cama. Minha irmã recebeu um tiro do lado direito da cabeça e sua filha no pescoço.”

Imagens de satélite e fotografias confirmam a magnitude da destruição causada pelas forças de segurança e descrita por dezenas de testemunhas.

Além das mortes e da destruição, nesta operação foram detidos pelo menos 200 homens e meninos. Os levaram à chefatura da Gendarmaria em Maroua e os encerraram em dois depósitos, onde muitos morreram durante a noite. Quase três meses depois do incidente, as autoridades disseram que 25 pessoas perderam a vida nas celas improvisadas, mas não revelaram a identidade das vítimas, a causa de sua morte, nem o local onde se encontram seus corpos. Enquanto 45 detidos foram transferidos para a prisão no dia seguinte, continua desconhecido o paradeiro de pelo menos 130 homens e meninos detidos nos dois povoados.

“É inaceitável que, quase nove meses depois da detenção em massa de 200 homens e meninos, a maioria de suas famílias continue sem saber se estão vivos ou mortos. É preciso realizar uma investigação completa, imparcial e independente para determinar o que aconteceu e fazer com que os responsáveis prestem contas”, afirmou Alioune Tine.

“A magnitude e depravação dos ataques do Boko Haram são atrozes e devem ser tomadas medidas adicionais para proteger a população civil e levar os culpados deste crime à Justiça. Mas é assustador que um exército que se pressupõe quer proteja a população civil contra o Boko Haram também tenha cometido atrocidades. Devem ser investigadas de forma imediata e imparcial os crimes cometidos por ambos os lados.”

Informação complementar

Para o relatório foram entrevistadas mais de 16 pessoas. A Anistia Internacional realizou três visitas de pesquisa no norte de Camarões em fevereiro, março e maio de 2015, assim como investigação de continuação entre junho e agosto de 2015. Entre as pessoas entrevistadas estavam vítimas e testemunhas de ataques cometidos pelo Boko Haram e das forças armadas camaronesas, assim como representantes do governo, entre eles, o ministro da Justiça, membros das forças de segurança, jornalistas, defensores e defensoras dos direitos humanos, pessoal de ajuda humanitária e outros peritos.

Baseando-se nos dados reunidos a Anistia Internacional considera que na região ocorre um conflito armado interno – que parece ser uma extensão do conflito no norte da Nigéria – e que agora é aplicável o direito internacional humanitário, as leis de guerra.

Em 20 de dezembro de 2014, as forças de segurança invadiram escolas corânicas na cidade de Guirvidig e detiveram 84 meninos, 47 deles menores de 10 anos e o menor de apenas 5 anos. As autoridades afirmaram que as escolas estão sendo utilizadas como campos de adestramento do Boko Haram. Os detidos ficaram reclusos durante mais de seis meses sem acesso à família antes de serem libertados em junho de 2015.

O Boko Haram se autodenomina agora “Província da África Ocidental do Estado Islâmico”. O presidente de Camarões deslocou ao menos 2.000 efetivos do Batalhão de Intervenção Rápida (BIR) junto com forças do Batalhão de Intervenção Móvel (BIM)para combater a violência do Boko Haram. A Anistia Internacional se dirigiu por escrito às autoridades camaronesas em julho de 2015 para solicitar comentários sobre as conclusões de sua pesquisa, mas não obteve resposta.