Forças militares israelenses mataram numerosos civis palestinos nos ataques direcionados a edifícios residenciais, o que, em alguns dos casos, configurou crimes de guerra, demonstra o novo relatório da Anistia Internacional sobre a operação “Margem Protetora” na Faixa de Gaza.
“Families under the rubble: Israeli attacks on inhabited homes” (Famílias sob os escombros: os ataques de Israel a residências”, publicado nesta quarta-feira (05/11). O relatório detalha oito casos em que edifícios de habitação foram bombardeados pelas forças militares israelenses sem qualquer aviso prévio durante a “Margem Protetora”, em julho e agosto deste ano. Só esses ataques, avaliados no relatório, causaram a morte de 104 civis, incluindo 62 crianças.
A investigação da Anistia Internacional revela a existência de um padrão frequente de ataques israelenses com recurso a bombas de elevada potência para arrasar casas de civis, às vezes dizimando famílias inteiras.
“O exército de Israel desrespeitou de forma flagrante as leis da guerra, levando a cabo uma série de ataques contra residências de civis e exibindo uma fria indiferença e desprezo na carnificina que causou”, sublinha o diretor do Programa para o Oriente Médio e Norte de África da Anistia Internacional, Philip Luther.
“Este relatório expõe um padrão de ataques a casas de civis por parte das forças israelenses, no qual é mostrado um desrespeito chocante pelas vidas dos civis palestinos, aos quais não foi dado nenhum aviso, nem nenhuma chance de fugirem”, prossegue.
Esta investigação contém numerosos relatos de sobreviventes dos ataques, os quais descrevem cenas como as em que escavaram freneticamente os destroços das casas destruídas, em busca dos corpos dos filhos e de outros familiares.
Em muitos dos casos documentados no relatório foi identificada pela Anistia Internacional a existência de possíveis alvos militares. Porém, a devastação provocada nas vidas e bens de civis, que ocorreu em todos os casos investigados, é claramente desproporcional em relação às vantagens militares que resultaram destes ataques.
“Mesmo que um combatente estivesse presente numa dessas residências, isto não absolve Israel da obrigação de tomar todas as precauções exequíveis para proteger as vidas de civis no meio dos combates. Os ataques repetidos e desproporcionais contra residências indicam que as atuais táticas militares de Israel têm falhas gravíssimas e desrespeitam os princípios das leis internacionais humanitárias”, avalia Philip Luther.
Bombardeios sobre civis sem aviso prévio
No mais mortal dos ataques documentados no relatório, 36 membros de quatro famílias, incluindo 18 crianças, foram mortos quando o prédio de três andares em que moravam foi atingido.
Israel não prestou informações sobre as razões que levaram a tomar aquele edifício por alvo, mas a Anistia Internacional recolheu provas que permitiram identificar possíveis alvos militares no local.
No segundo e mais mortífero ataque tudo aponta que as forças militares de Israel tinham como alvo um membro das Brigadas al-Qassam, braço armado do Hamas, o qual se encontrava no exterior da casa da família de Abu Jame. A casa ficou em escombros – 25 civis morreram, inclusive 19 crianças.
Independente dos alvos que as forças de Israel pretendiam atingir, ambos os ataques constituem ofensivas desproporcionais e, ao abrigo da legislação internacional, deveriam ter sido canceladas ou adiadas assim que se tornou evidente a presença de civis naquelas casas.
As autoridades israelenses não deram quaisquer justificativas para fazerem aqueles ataques. Em alguns dos casos analisados neste relatório, a Anistia Internacional não conseguiu tão pouco identificar a presença de alvos militares, e nesses casos tudo indica que a ofensiva tomou por alvo, de forma direta e deliberada, civis ou bens civis – o que configura crimes de guerra.
Em todos os casos investigados pela Anistia Internacional não foi dado aviso prévio aos habitantes das casas bombardeadas. Se houvesse aviso prévio, não há dúvida de que se teria evitado a perda significativa de vidas.
“É trágico pensar que as mortes destes civis podiam ter sido evitadas. O ónus recai sobre as autoridades de Israel, as quais têm de explicar por que razão decidiram deliberadamente arrasar casas cheias de civis, quando tinham a obrigação legal de minimizar as chances de atingirem civis – e dispunham dos meios para o fazerem”, explica o diretor do Programa para o Oriente Médio e Norte de África da Anistia Internacional.
Corpos despedaçados e irreconhecíveis
“Families under the rubble: Israeli attacks on inhabited homes” destaca ainda as consequências dos ataques israelenses contra residências de civis palestinos, que destruíram famílias inteiras. Em algumas das residências bombardeadas estavam famílias numerosas, com a afluência de familiares que já haviam fugido de outras áreas de Gaza em busca de segurança.
Sobreviventes do ataque que vitimou a família Al-Hallaq descreveram cenas de partes de corpos espalhadas por entre os escombros e o caos depois de três mísseis terem atingido a casa.
O médico palestino Khalil Abed Hassan Ammar, do Conselho Médico Palestino, e residente naquele prédio, contou à Anistia Internacional:
“Foi horrível não termos conseguido salvar ninguém… As crianças estavam todas queimadas, não dava para perceber quais eram as minhas e quais eram dos vizinhos. Levámos todos os que conseguimos para a ambulância. Só reconheci o meu filho mais velho, Ibrahim, pelos sapatos que ele tinha calçados… eu os havia comprado dois dias antes”.
Ayman Haniyeh, um dos vizinhos dos Al-Hallaq, relatou o trauma de tentar encontrar sobreviventes. “Só consigo lembrar-me dos pedaços de corpos: dentes, uma cabeça, braços, tripas, tudo espalhado, disperso”.
Outro sobrevivente deste mesmo ataque recordou ter segurado nos braços um saco cheio com as partes do corpo do filho.
Israel continua sem admitir a ocorrência dos ataques descritos neste relatório e não respondeu aos pedidos da Anistia Internacional de explicações sobre as razões que conduziram aos mesmos.
Comunidade internacional tem de acionar o TPI
Pelo menos 18 mil casas foram destruídas ou ficaram inabitáveis durante o conflito. Mais de 1.500 civis palestinos, incluindo 519 crianças, foram mortos em ataques de Israel durante esta ofensiva.
Grupos armados palestinos também cometeram crimes de guerra, disparando indiscriminadamente milhares de foguetes contra território israelense, em que morreram seis civis, entre eles uma criança.
“Agora o crucial é que haja apuração de responsabilidades nas violações das leis internacionais humanitárias que foram cometidas. As autoridades israelenses têm de fornecer respostas. A comunidade internacional tem de tomar medidas urgentes para acabar com o ciclo perpétuo de violações graves e de completa impunidade”, insta Philip Luther.
Face à falha das autoridades israelenses e palestinas em investigarem de forma independente e imparcial as denúncias de crimes de guerra, impõe-se que a comunidade internacional dê o seu aval e apoio ao envolvimento do Tribunal Penal Internacional (TPI).
A Anistia Internacional reitera os apelos feitos às autoridades israelenses e palestinas para ativarem o Estatuto de Roma e dar ao TPI a autoridade necessária para investigar crimes cometidos em Israel e nos Territórios Palestinos Ocupados.
A organização exige ainda que o Conselho de Segurança das Nações Unidas submeta a situação de Israel e dos Territórios Palestinos Ocupados ao TPI, para que o procurador daquela instância máxima internacional possa investigar devidamente as alegações de crimes de guerra cometidos por ambas as partes, à luz da legislação internacional.
Israel continua a rejeitar o acesso a Gaza às organizações internacionais de direitos humanos, incluindo a Anistia Internacional, que teve de conduzir a investigação para este relatório à distância, com o apoio de dois operacionais no terreno que vivem em Gaza. O Governo israelense anunciou ainda que não irá cooperar com a comissão de inquérito criada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
“A recusa em permitir o acesso a Gaza de observadores independentes de direitos humanos soa a uma tentativa deliberadamente orquestrada para encobrir violações de direitos humanos ou esconder algo da análise das organizações internacionais. Israel tem de cooperar totalmente com a comissão de inquérito das Nações Unidas e permitir o acesso imediato a Gaza das organizações internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional, dando assim prova do compromisso assumido em matéria de direitos humanos”, remata o diretor do Programa para o Oriente Médio e Norte de África da Anistia Internacional.