A respeito da decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar constitucional o decreto 4887/2003, que regulamenta o procedimento para reconhecimento, demarcação e titulação de terras quilombolas, a diretora-executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck, declara:

“Em um contexto de graves retrocessos e ataques a direitos já conquistados pela sociedade brasileira, a decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar o decreto 4887/2003 totalmente válido, reafirmando o direito dos quilombolas à suas terras, por 10 votos contra apenas 1, deve ser comemorada. Ainda, o debate desta tarde, que em sua maioria afastou a tese do marco temporal, admitindo que mesmo aquelas comunidades que não estavam ocupando suas terras em 05 de outubro de 1988 por terem sido anteriormente expulsas façam jus à titulação, representa um importante avanço no sentido do reconhecimento da identidade e história dos povos quilombolas no Brasil”.

Entretanto, ao mesmo tempo em que comemora a decisão do STF, a Anistia Internacional demonstra sua preocupação com a lentidão nos processos de titulação das terras quilombolas – atualmente mais de seis mil comunidades aguardam o reconhecimento de seu direito à terra, garantido pela Constituição de 1988. Esta morosidade tem resultado em conflitos com fazendeiros ou grileiros, que geralmente atacam, ameaçam e intimidam estas comunidades.

“Entendemos que a situação do campo no Brasil é extremamente delicada e qualquer recuo na legislação e no arcabouço legal já existente tem o potencial de gerar ainda mais conflitos e violência no campo, em especial em terras já reconhecidas como de propriedade das comunidades quilombolas e que aguardam titulação”, completa.

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Contexto
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A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) foi entregue ao Supremo Tribunal Federal em 2004 pelo atual partido Democratas (DEM), na época Partido da Frente Liberal (PFL), com o intuito de questionar a validade do Decreto 4.887/2003, promulgado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação e titulação de terras ocupadas por remanescentes de quilombos no Brasil.

O decreto tem sua base normativa na Constituição Federal de 1988 e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reconhece a relação específica que as comunidades quilombolas possuem com seu território e identidade, e garante uma série de direitos, entre eles, o direito às suas terras ancestrais e de serem previamente consultadas quanto a quaisquer medidas, legislativas ou não, que afetem diretamente seu modo de vida e território.

Apesar da evidente consonância do Decreto com a Constituição e com o Direito Internacional, o PFL argumentou que o decreto padecia de inconstitucionalidade uma vez que invadia esfera reservada à lei, com procedimentos que resultariam em aumento de despesas e que, ao reafirmar o critério de autodeclaração quilombola, poderia ferir o direito à propriedade, gerando a possibilidade de fraude. Para o PFL, a atribuição para o reconhecimento da identidade quilombola e definição do procedimento de titulação caberia ao Congresso Nacional.

O julgamento teve início em 2012, quando o Ministro César Peluzo, hoje aposentado, votou pelo acolhimento integral da ação, declarando o Decreto inconstitucional. Em 2015, a ministra Rosa Weber, apresentou seu voto-vista pela improcedência total da ação, por entender que a norma está de acordo com a Constituição Federal, iniciando assim a divergência sobre a questão. Houve, então, pedido de vista do ministro Dias Toffoli, que apresentou seu voto em novembro de 2017, abrindo uma terceira tese: a de improcedência parcial, para reconhecer a constitucionalidade do decreto, estendendo-o para as áreas eventualmente necessárias ao futuro crescimento da comunidade, porém modificando-o para acatar a tese do Marco Temporal, que passaria a reconhecer como de propriedade quilombola apenas as terras que estavam ocupadas quando da promulgação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 2018, salvo as que conseguissem comprovar a perda da posse em função de atos ilícitos e deslocamento forçado. Nesta época, o ministro Edson Fachin pediu vista dos autos, e o julgamento somente fora retomado ontem, dia 08 de fevereiro de 2018.

O julgamento deve ser comemorado como uma decisão histórica do Supremo em prol das comunidades quilombolas no Brasil: dez dos 11 ministros votaram contra a ação, declarando a constitucionalidade, e, portanto, a manutenção do decreto.

Segundo afirmou o ministro Ricardo Lewandowski em seu voto, a autodeclaração é prova suficiente da ocupação destes territórios pelos quilombolas. Para o ministro Luís Roberto Barroso o direito dos povos quilombolas a suas terras ancestrais e autodeclaração de sua identidade étnica são um direito garantido. O ministro descartou o argumento que se baseava na possibilidade de fraude para afastar a autodeclaração, o que considerou absurdo.

Ao se colocar contra o Ministro Gilmar Mendes, Barroso afirmou que normas referentes a direitos humanos independem de previsão em lei para serem respeitadas, e ainda, destacou a histórica luta do Movimento Negro brasileiro pelo reconhecimento e titulação das terras quilombolas quando da elaboração da Constituição de 1988, foi relembrada ao longo do julgamento.

Apesar da indiscutível vitória que tal decisão representa, é preciso mais atenção e celeridade ao processo de demarcação e titulação das terras quilombolas. Atualmente, o Brasil tem cerca de 3 mil comunidades quilombolas já reconhecidas pela Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura. Dessas, aproximadamente 1.536 já recorreram ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para obter o título de suas terras. Desse total, apenas 295 comunidades obtiveram o documento. Estima-se que as terras quilombolas tituladas totalizem apenas 7.548 quilômetros quadrados, ou exato 0,0886% do território nacional. A lentidão no processo de titulação acirra conflitos no campo e aumenta a vulnerabilidade destas comunidades.