As primeiras semanas de janeiro de 2017 têm sido marcadas pelas rebeliões em unidades prisionais no Brasil que, mais uma vez, expuseram o cenário de horror nos cárceres. A tragédia já havia sido anunciada por organismos como o Conselho Nacional de Justiça, a ONU e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Nesta entrevista, Fernanda M. Givisiez, bacharel em direito e perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, fala sobre a gravidade da situação e aponta medidas que deveriam ser tomadas para garantir que o sistema carcerário, tão importante para a justiça, cumpra seu papel.

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Qual é o panorama geral do sistema prisional brasileiro atualmente? Quais são as principais medidas a serem adotadas pelo governo para superar os problemas nesse contexto de crise? 

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) já foi a 11 estados e o Distrito Federal, compreendendo as cinco regiões do país, tendo visitado 54 unidades de privação de liberdade, entre estabelecimentos penais, unidades socioeducativas, instituições de longa permanência e unidades de saúde mental.

No que tange as unidades prisionais, o principal problema encontrado se refere à omissão do Estado. O Estado em geral não cumpre a sua função legal de custódia das pessoas presas, de modo que a ação da administração prisional é bastante limitada. Esse quadro reforça a ação de facções criminosas, gerando situações como as rebeliões ocorridas recentemente em Manaus.

Como produto desta omissão , o Mecanismo Nacional encontra diversos tipos de problemas nas unidades prisionais, como superlotação, deficiência no acesso à saúde, precariedade de infraestrutura, falta de acesso à justiça, alimentação inadequada, escassez de atividades de trabalho e educacionais, parca assistência material, realização de revistas vexatórias tanto em pessoas privadas de liberdade quanto em seus familiares.

As mulheres presas são basicamente invisibilizadas pela administração penitenciária, de modo que suas necessidades básicas não são respeitadas. Assim, atendimentos de saúde da mulher são quase inexistentes, bem como raramente são entregues insumos de higiene básicos às presas. Em geral, agentes penitenciários do sexo masculino custodiam as presas em espaços onde apenas agentes do Estado femininos deveriam atuar, tal como disposto pela legislação nacional e internacional. Ainda, as presas grávidas e lactantes apresentam seus direitos sistematicamente violados. As unidades prisionais femininas não apresentam espaços adequados para este público, são comuns os casos em que as presas em trabalho de parto dão à luz algemadas ou sem qualquer auxílio, assim como as prescrições legais que possibilitam a prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças até doze anos são ignoradas.

Além disso, o MNPCT percebe falhas na gestão dos profissionais das unidades, como agentes penitenciários e equipe técnica, os quais comumente são em número bastante reduzido, trabalham longas horas com pouco descanso, possuem remuneração inadequada e pouco apoio psicológico por parte dos governos estaduais, bem como muitas vezes têm vínculos de trabalho precários. Realidade que reverbera na qualidade dos serviços penitenciários e contribui para prática de tortura.

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Casos de tortura são comuns nas unidades prisionais? Como identifica-los?

Casos de tortura também são frequentes nas unidades prisionais. Em geral, são cometidos por agentes pertencentes a forças especiais de segurança que realizam sistematicamente revistas nos presos e nos espaços da prisão. Tais revistas são realizadas de forma truculenta, de modo altamente desproporcional, sendo usados de forma indiscriminada sprays de pimenta, armas de choque elétrico e munição de borracha. Inclusive, em alguns casos, são usadas também armas de fogo.

Os exames periciais realizados para averiguar indícios de tortura, quando realizados, costumam violar diretrizes nacionais e internacionais, como o Protocolo de Istambul e o Protocolo Brasileiro de Perícia Forense no Crime de Tortura, prejudicando os seus resultados. Com isso, a responsabilização em casos de tortura fica bastante afetada.

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Em que situação se encontrava o sistema prisional do Amazonas e, em particular, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) antes do massacre de 1º de janeiro?

Em 2015, uma equipe do MNPCT realizou visitas a quatro unidades prisionais em Manaus, incluindo o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ). Nas visitas, que fazem parte das atribuições legais do Mecanismo, o órgão identificou problemas e características que podem estar relacionadas à violenta rebelião ocorrida em 1º de janeiro de 2017, que culminou em número expressivo de mortos, feridos e foragidos. As visitas foram feitas entre  07 e 11 de dezembro de 2015 e o relatório foi publicado em janeiro de 2016.

O MNPCT identificou como problema central da unidade a omissão estatal frente à execução penal. O Estado não cumpria a sua função legal de custódia das pessoas presas, de modo que a ação da administração prisional era bastante limitada diante da atuação de facções criminosas. Os presos exerciam um autogoverno, estipulando rígidas regras de conduta, em boa medida legitimadas pela omissão do Estado, afetando a segurança jurídica e, mais grave, a vida dos presos.

Os chamados “seguros” formavam o grupo de presos mais vulneráveis. Em geral, eram pessoas que compunham uma facção rival, estando dispersas pela unidade em áreas improvisadas, sem qualquer infraestrutura, em completa afronta à sua dignidade e segurança. Mesmo isolados dos demais detentos, estes presos vulneráveis tinham muito receio de, em uma rebelião, serem torturados e morrerem. Vários relataram a presença de armas artesanais que poderiam ser usadas para quebrar paredes e romper grades. Este grupo tinha seu direito à vida em grave risco.

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Quais os principais problemas que se relacionam com a terceirização da gestão do presídio?

O COMPAJ é administrado por uma empresa privada, Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda., em sistema de cogestão. No momento da visita, apresentava uma alta superlotação, com mais do dobro de sua capacidade. Muitos presos narraram a precariedade dos serviços de saúde, a dificuldade de acesso ao trabalho e à escola, bem como relataram problemas infraestruturais. Adicionalmente, os funcionários – todos contratados pela empresa privada – disseram receber parcos salários e não ter planos de carreira. Por essas questões, havia uma forte rotatividade dos profissionais o que, em boa medida, dificultava a averiguação de casos de tortura.

Depois da visita ao Compaj, quais foram as recomendações feitas pelo MNPCT ao governo?

O Mecanismo Nacional estipulou uma série de recomendações a órgãos do Poder Executivo, Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, assim como ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e ao Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Entretanto, cerca de um ano após o envio do relatório com tais recomendações, não houve resposta ou informação acerca das providências tomadas.

Diante dos últimos acontecimentos, torna-se fundamental destacar algumas das recomendações emitidas no relatório publicado em janeiro de 2016.

  • Criação do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura;
  • Averiguação dos fatos ocorridos recentemente no COMPAJ, de modo que os agentes, públicos ou privados, envolvidos, direta ou indiretamente, nos casos de tortura e mortes nas unidades sejam devidamente investigados e responsabilizados;
  • Encaminhamento das pessoas privadas de liberdade que apresentarem indícios de tortura e lesões corporais para a realização de exames de corpo de delito, visando o registro e apuração dos fatos;
  • Realização do exame de corpo de delito em consonância com os parâmetros estabelecidos pelo Protocolo de Istambul e pelo Protocolo Brasileiro de Perícia Forense no Crime de Tortura;
  • Elaboração de um Plano de Redução da População Carcerária, com medidas de curto, médio e longo prazo, envolvendo órgãos do poder público estadual e federal; a aplicação de medidas alternativas à prisão.

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Como o Judiciário e o Ministério Público podem contribuir para melhorar a situação dos presídios no Brasil?

Os órgãos do sistema de justiça criminal, como o Judiciário e o Ministério Público, aplicam a pena de prisão como regra, de modo que alternativas penais quase não são instituídas. Outra questão grave relacionada a este ponto se refere aos presos provisórios, sendo que cerca de 40% da população prisional nacional se refere a pessoas neste perfil. A liberdade provisória raramente é aplicada, de forma que, neste contexto, mecanismos como a audiência de custódia se fazem altamente necessários.

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Por que as graves condições no sistema penitenciário devem ser encaradas como um problema de toda a sociedade?

As consequências do encarceramento não são, como se pode pensar, problemas vividos individualmente pelas pessoas que foram presas, mas afetam a sociedade como um todo. Em primeiro lugar, o sistema prisional não é capaz de enfrentar aquilo a que supostamente se propõe, isto é, os índices de violência continuam altos apesar de o encarceramento no Brasil ter aumentado drasticamente nos últimos anos.

Para além disso, o processo de encarceramento agrava a condição socioeconômica das pessoas que foram presas e de suas famílias, que fazem parte de grupos específicos da sociedade, considerados como vulneráveis, notadamente, pessoas pobres, moradoras de regiões periféricas e negras. A população egressa do sistema encontra muita dificuldade de conseguir trabalhar, haja vista o histórico criminal e as dificuldades em desenvolver atividades que sejam de interesse para a pessoa; não possui documentos pessoas básicos, que muitas vezes foram destruídos no processo de detenção; tem seus vínculos afetivos fragilizados pela distância e isolamento que o encarceramento produz; além de outras dificuldades materiais e sociais enfrentadas.

Assim, o sistema prisional não apenas não se presta para resolver a questão da violência, como também agrava as desigualdades sociais existentes e as violações vividas pelas populações mais pobres.

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