Serra Leoa deve suspender uma proibição profundamente discriminatória que impede meninas visivelmente grávidas de frequentarem a escola e fazerem provas, o que continua a enraizar a desigualdade de gênero no país e coloca o futuro de milhares de adolescentes em risco, declarou a Anistia Internacional hoje, um ano depois de seu relatório sobre o problema.

“A proibição que impede que meninas visivelmente grávidas frequentem a escola e façam provas é irremediavelmente mal orientada e não faz nada para atacar as causas por trás da alta taxa de gravidez na adolescência de Serra Leoa, que subiu durante a devastadora crise do Ebola e continua alta apesar dessa proibição”, disse Alioune Tine, diretor regional da Anistia Internacional na África Central e do Oeste.

“Em vez de humilhar e excluir as adolescentes, as autoridades de Serra Leoa devem se concentrar em aumentar a oferta de informações sobre saúde sexual e reprodutiva nas escolas e proteger as meninas da violência sexual e de relacionamentos abusivos. A menos que essas questões sejam abordadas, o ciclo de gravidez precoce indesejada continuará por várias gerações”.

A proibição foi declarada política oficial do governo em abril de 2015, pouco tempo antes das escolas reabrirem após a crise do Ebola. Mais de um ano e meio depois, a Anistia Internacional está bastante preocupada com o fato dela ainda estar em vigor apesar das críticas nacionais e internacionais.

A Anistia conversou com 68 meninas de 15 a 20 anos que estavam grávidas ou deram à luz recentemente nas áreas do Oeste Urbano e Oeste Rural de Serra Leoa. Ela também falou com 26 agentes da sociedade civil nacionais e internacionais, professores e autoridades para avaliar o impacto da proibição.

A maioria das meninas entrevistadas ficou grávida durante o surto de Ebola, quando houve um crescimento da gravidez na adolescência e um pico na violência sexual. O impacto econômico negativo da crise do Ebola levou a um aumento nos relacionamentos abusivos e exploratórios.

 Impacto da proibição sobre as meninas grávidas

A maioria das meninas disse que a política fez com que elas se sentissem abandonadas e desencorajadas por não poderem ir à escola. Elas descreveram a frustração por não poderem fazer provas para as quais tinham estudado bastante.

Uma delas disse aos pesquisadores: “Eu teria sido capaz de fazer a prova. Eu estava sempre com meus livros. Mesmo grávida, ser você estudou, você será capaz de fazer o exame”.

 As meninas também falaram sobre a frustração de precisar repetir o ano depois de dar à luz, já que perderam a oportunidade de fazer a prova grávidas:

“Vou ter que repetir de ano. Eu me sinto mal ao ver meus amigos passando para o próximo ano”, disse uma menina de 17 anos à Anistia Internacional.

O estigma que cerca a gravidez na adolescência em Serra Leoa faz com que as meninas se sintam envergonhadas por estarem grávidas e às vezes rejeitadas, ou até abusadas, pela família e pelos professores.

Uma delas disse à Anistia Internacional que saiu voluntariamente da escola depois de ver como suas colegas foram tratadas no passado: “Um professor anunciou que a menina estava grávida na frente da escola inteira, tirou a mochila dela (ela estava protegendo a barriga) e bateu nela com uma bengala”.

Escolas especiais para as grávidas

Em maio de 2015, em resposta à pressão nacional e internacional, o presidente de Serra Leoa, Ernest Bai Koroma, anunciou o estabelecimento de um sistema educacional “transitório” e alternativo que permitiria às grávidas continuar indo à escola, mas em locais ou horários diferentes dos outros alunos.

Apesar desse sistema paralelo fornecer às meninas acesso a uma forma limitada de educação, o presidente Koroma, em seu discurso para o dia da mulher de 2016, aparentemente confirmou que ele era em parte baseado nos estereótipos negativos sobre as meninas grávidas quando declarou: “Elas continuarão a receber educação formal sem se misturarem a outras estudantes na mesma classe. Vamos voltar para o que é básico e proteger nossos valores e nossa cultura”.

As autoridades do Ministério da Educação disseram à Anistia Internacional que 14.500 meninas se registraram inicialmente para o esquema, e que cerca de 5.000 foram reintegradas à escola regular depois de dar à luz. As aulas foram dadas três vezes por semana por cerca de duas a três horas por dia. O currículo usado no esquema era diferente do da escola regular e se concentrava apenas nos temas centrais. As meninas também receberam informações e serviços de saúde, como planejamento familiar.

A maioria daquelas com quem a Anistia Internacional conversou elogiou o sistema transitório. Algumas disseram que preferiam esse sistema à escola regular por causa do estigma enfrentado.

Uma garota disse à Anistia: “Eu sentia vergonha. Na escola normal, todos teriam rido de mim”. Mas várias meninas disseram que preferiam ter ficado na escola regular se tivessem escolha.

 “Só nos ensinavam matemática e inglês, mas eu estava aprendendo estudos comerciais na escola, e eles não nos ensinaram isso”, disse uma das meninas à Anistia.

Outra declarou: “Eu teria escolhido minha escola se pudesse, pois ela me daria resultados [notas de prova]. Quando eu der à luz, vou continuar na minha própria escola, e o centro de aprendizado será somente para quando eu estiver grávida”.

O esquema temporário terminou em agosto de 2016, mas as aulas alternativas para grávidas continuarão sob um novo esquema, executado pelo Ministério da Educação com o apoio da UNICEF e do governo do Reino Unido, que terá um foco mais amplo sobre as meninas que saíram da escola por diversos motivos, além de intervenções para ajudar a mantê-las na escola. O novo esquema durará 17 meses a partir de novembro de 2016.

Especialistas nacionais e internacionais receberam bem o foco continuado na educação das meninas por meio desse programa, mas permanece a preocupação com a falta de escolha para as grávidas devido à proibição e a incapacidade delas de fazerem provas, o que contraria as obrigações legais de Serra Leoa de fornecer acesso igualitário à educação de qualidade para todas as crianças.

Acesso limitado a informações sobre saúde sexual e reprodutiva

As escolas especiais para grávidas não são a solução para abordar a alta taxa de gravidez na adolescência de Serra Leoa. Apesar das recomendações da Anistia, do Comitê sobre os Direitos da Criança e de organizações nacionais, a educação sobre saúde sexual e reprodutiva ainda não é parte do currículo escolar formal. A maioria das meninas disse à Anistia que não sabia sobre planejamento familiar e teve pouca ou nenhuma educação sexual antes da gravidez.

Uma delas disse a nossos pesquisadores: “Na escola, eles não nos ensinam de verdade sobre planejamento familiar. Acham que somos muito novas ou que é ruim, ou que vai nos incentivar a fazer sexo”.

As meninas também tinham muito medo e desinformação a respeito do planejamento familiar. Uma garota de 19 anos que estava grávida de quatro meses disse:

“Usei a injeção por um ou dois anos, mas minha menstruação não vinha. Alguém disse a nós que a injeção tinha matado uma menina, pois ela não menstruava. Eu pensei: ‘Vou parar com a injeção até menstruar’. Não sabia para quem fazer perguntas sobre esse assunto. Daí fiquei grávida”.

Desafios para voltar à escola regular

As grávidas podem enfrentar barreiras complexas e coincidentes para continuar sua educação. Além da proibição, as taxas escolares também foram uma grande preocupação para a maioria das meninas com as quais a Anistia conversou. Em um país onde 72% da população vive na extrema pobreza, essas taxas e o custo de ter um filho podem ser paralisantes. Além disso, o estigma em torno da gravidez na adolescência faz com que muitas famílias retirem o apoio financeiro, o que torna muito difícil para grande parte das meninas voltar à educação regular mesmo depois que os filhos nascem. Uma delas disse à Anistia:

“Não posso voltar para minha escola porque não posso pagar as taxas. Estou tentando fazer aulas particulares. Não tenho ninguém para me ajudar”.

“A menos que essas barreiras à educação sejam removidas, o governo de Serra Leoa estará decepcionando profundamente suas meninas e colocando o futuro delas em risco. Alinhado com suas obrigações internacionais, o governo deve tomar medidas concretas para garantir progressivamente o acesso à educação para todas as meninas, incluindo subsídios para aquelas que precisarem, como parte de sua estratégia de educação”, disse Alioune Tine.

“Erradicar o estigma em torno das grávidas também é crucial. Serra Leoa fez muito esforço para atacar o estigma contra os sobreviventes do Ebola, e deve garantir que as adolescentes em situações altamente vulneráveis estejam protegidas e apoiadas por seus professores, familiares e comunidades, em vez de serem culpadas e humilhadas”.

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