Os governos da América Central estão alimentando uma intensa crise de refugiados na região ao ignorar a violência galopante e as crescentes taxas de homicídios em El Salvador, Guatemala e Honduras, afirma a Anistia International em um novo relatório divulgado hoje (14/10).

 “Lar Doce Lar: O papel de Honduras, Guatemala e El Salvador na crescente crise de refugiados” avalia como os três países estão falhando ao não proteger sua população da violência e não estabelecer um plano de proteção para as pessoas que retornam após serem deportadas de países como o México e os Estados Unidos, voltando a correr risco de vida.

“El Salvador, Guatemala e Honduras praticamente se tornaram zonas de conflito onde as vidas parecem descartáveis e milhões de pessoas vivem em constante terror de que membros de gangues ou até das forças de segurança pública possam fazer com elas ou com suas famílias”, comenta Salil Shetty, secretário-geral da Anistia Internacional.

 “Esses milhões de pessoas são agora os protagonistas de uma das crises de refugiados menos visível no mundo”.

 “Além de países como o México e os Estados se omitirem completamente da responsabilidade de proteger os refugiados e solicitantes de asilo provenientes da América Central, já passou da hora das autoridades de El Salvador, Guatemala e Honduras reconhecerem o seu papel nesta crise e tomarem medidas para resolver os problemas que forçam essas pessoas a deixarem suas casas”.

“Milhões de pessoas da América Central encontram-se em um beco sem saída: vítimas de países que não cumprem sua responsabilidade de oferecer a proteção internacional que elas precisam e da absoluta falta de capacidade e disposição de seus governos para mantê-los a salvo”.

 A violência que bate recordes

As taxas de homicídio em El Salvador têm aumentado dramaticamente nos últimos três anos, à medida que as pessoas estão sendo cada vez mais afetadas por confrontos entre por gangues rivais que disputam controle sobre territórios.

As taxas de homicídio na Guatemala e Honduras também estão entre as mais altas do mundo.

A ONU já classificou El Salvador como um dos mais perigosos do mundo fora de uma zona de guerra: foram mais de 108 homicídios por 100.000 habitantes em 2015.

Em Honduras, o índice foi de 63,75 e na Guatemala de 34,99 por 100.000 habitantes.

A título de comparação, no Brasil o índice mais recente já processado é o de 2014, quando a taxa de homicídios por 100.000 era de 30,3 e as três capitais com maior índice eram Fortaleza com 81,5; Maceió com 73,7 e São Luís com 67,1. (Fonte: Mapa da Violência 2016)

Os jovens da América Central são os mais afetados pela violência: mais de metade das pessoas assassinadas nos três países em 2015 tinha idade inferior a 30 anos.

Homens jovens muitas vezes são forçados a entrar para gangues, enquanto as mulheres são forçadas a se relacionar de com membros desses grupos armados. Elas sofrem sistematicamente violência sexual e outras formas de violência baseadas em gênero.

Comerciantes e motoristas de ônibus estão regularmente sujeitos à extorsão imposta por gangues que controlam determinadas áreas. Aqueles que não cumprem as normas rígidas de conduta muitas vezes se tornam vítimas de abuso ou homicídio.

Muitas crianças nos três países disseram à Anistia Internacional que tinham deixado a escola por medo de membros das gangues e, por isso, passam o dia inteiro em casa.

Oficialmente o Ministério da Educação de El Salvador informou que 39 mil alunos deixaram a escola por causa de assédio ou ameaças de gangues em 2015: três vezes mais do que em 2014 (13 mil). O sindicato dos professores acredita que o número real pode ultrapassar 100 mil estudantes.

 Em outros casos, adolescentes sofrem intimidações e ataques cometidos pelas forças de segurança que os acusam de pertencer a gangues.

 Andrés, 16, (nome fictício) vive escondido em El Salvador depois de ter sido preso em maio pela polícia. De acordo com seu relato à Anistia Internacional, ele foi torturado para confessar que atuou como segurança de uma das gangues em uma troca de tiros, no que parece ter sido uma tentativa desesperada das autoridades mostrarem que estão tentando lidar com os níveis alarmantes de crimes violentos no país.

 Ele disse que os soldados despejaram garrafas de água em sua boca e nariz, submergiram sua cabeça, enfiaram areia em sua boca, pularam no seu estômago e, em seguida, proferiram chutes e socos, seguidos de ameaças de morte se ele não confessasse.

 Sua mãe se queixou às autoridades do tratamento abusivo sofrido por Andrés, o que levou à abertura de uma investigação.

 Ele agora precisa mudar de casa constantemente por medo de ser encontrado por seus torturadores. Andrés está desesperado para deixar o país.

 

Sem proteção

A violência implacável levou a uma onda de pedidos de asilo de cidadãos da América Central ao México, Estados Unidos e outros países, chegando a níveis que não se via desde que os conflitos na região terminaram, há décadas.

 De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o número de pedidos de asilo de pessoas dos três países aumentou mais de seis vezes nos últimos cinco anos, especialmente aqueles dirigidos aos países vizinhos e aos Estados Unidos.

No entanto, apesar da esmagadora evidência de que muitos solicitantes de asilo enfrentam a violência extrema e, possivelmente, morte, se suas solicitações não forem aprovadas, as deportações realizadas pelo México, Estados Unidos e por outros países têm aumentado. O número de pessoas da Guatemala, Honduras e El Salvador deportadas pelo México aumentou quase 180% entre 2010 e 2015.

 Deportado para a morte

Para Saul já é tarde demais. Este homem, de 35 anos e pai de cinco filhos, foi morto no seu país de origem, Honduras, menos de três semanas depois de ser deportado para lá, em julho 2016, quando seu pedido de asilo foi negado no México.

 Ele era motorista de ônibus – umas das profissões mais perigosas em Honduras por causa do controle exercido pelas gangues sobre o setor de transportes – e fugiu do país em novembro de 2015, depois de ter sobrevivido a um ataque com dois de seus filhos, que ficaram gravemente feridos. A polícia não investigou o ocorrido nem lhe ofereceu proteção.

 Quando Saul falou com a Anistia Internacional em julho, suas palavras foram: “Eu acho que vai acontecer algo assim novamente, talvez comigo “.

 Sua esposa e filhos vivem agora com medo de que possa acontecer.

 

As autoridades de El Salvador, Honduras e Guatemala não informaram à Anistia Internacional como utilizarão os U$750 milhões de dólares que receberão dos Estados Unidos como parte do “Plano da Aliança para a Prosperidade” para prestar apoio às pessoas deportadas cuja vida está em perigo. A iniciativa tem como objetivo abordar as causas da migração para conter o fluxo migratório e proteger aqueles que são deportados.

El Salvador, Honduras e Guatemala criaram centros de acolhimento formais para pessoas deportadas. Essas pessoas têm que passar por uma breve entrevista na qual um oficial de imigração pergunta se sofreram abusos durante a viagem. Raramente se pergunta sobre a violência que os fizeram fugir de seu próprio país ou possíveis necessidades de proteção no retorno.

“Os programas de acolhimento dos deportados são uma piada de mau gosto. Um edifício brilhante, uma refeição quente e um banner de boas-vindas não vai manter essas pessoas a salvo dos horrores que as esperam em casa “, criticou Salil Shetty.

 “Em vez disso, o que é necessário é uma iniciativa eficaz em toda a região para alocar o investimento internacional que recebem para enfrentar as causas que levam tantas pessoas a fugir desesperadamente de suas casas”.

 “A menos que os líderes da América Central encarem os níveis alarmantes de violência em seus países, a região corre perigo de mergulhar novamente em seus momentos mais sombrios. Em vez de negar que as pessoas estão fugindo da violência, as autoridades devem concentrar os esforços na tentativa de encontrar soluções para ela”.

Como o Brasil pode contribuir para aliviar a crise

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Atualmente, devido à dificuldade de acessar os Estados Unidos e o México e à crescente onda de deportações de quem lá chega em busca de refúgio, grande parte da população que consegue fugir das violações graves e generalizadas de Direitos Humanos em El Salvador, Honduras e Guatemala solicita refúgio em países vizinhos como Belize, Panamá e Costa Rica.

O Panamá é a 76ª. economia do mundo em termos de PIB bruto, tem 4 milhões de habitantes em um território menor que o estado de Pernambuco e já abriga 3.400 pessoas refugiadas; a Costa Rica é 75ª. economia mundial, tem em torno de 5 milhões de habitantes em um território um pouco maior do que o do estado do Espírito Santo e abriga 3600 pessoas refugiadas – já o Brasil é a 9ª. maior economia, sua população de 210 milhões de habitantes está amplamente espalhada em um território de dimensões continentais e, no entanto, abriga apenas 9 mil pessoas refugiadas.

Essa comparação entre países latino-americanos evidencia o que se verifica no mundo todo: a distribuição atual de pessoas refugiadas deixa alguns países extremamente sobrecarregados e outros praticamente isentos de sua responsabilidade de acolhida de populações vulneráveis.

Para reverter esse quadro e aliviar a crise na América Central, o governo federal brasileiro deve ampliar a recepção de pessoas refugiadas vindas dessa região, de modo que o Brasil seja uma alternativa viável para estas pessoas: formas:

• Ainda em 2016 os membros do CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados) representantes do executivo federal devem propor ao Comitê a criação de um programa de vistos humanitários destinado a pessoas afetadas pelas violações graves e generalizadas de Direitos Humanos nos países do Triângulo Norte que queiram solicitar refúgio no Brasil (nos moldes do programa voltado para a população afetada pelo conflito na Síria)

• A partir de janeiro de 2017 ampliar seu programa de Reassentamento Solidário de forma que ele passe a incluir pessoas de nacionalidade salvadorenha, hondurenha e guatemalteca, de forma que receba uma quantidade significativa de pessoas em relação à escala da crise na América.

Atualmente o programa de reassentamento brasileiro é voltado sobretudo para pessoas colombianas residentes no Equador e, em 2016, ofereceu reassentamento a somente 38 pessoas – um número completamente insignificante face a uma crise global de 21 milhões de pessoas refugiadas.

Além dessas duas medidas concretas, tanto o governo quanto a sociedade civil brasileira devem pressionar os governos da América Central a implementarem políticas de proteção às pessoas que retornam a seus países de origem após serem deportadas e a implementar políticas de prevenção e redução de violência armada para permitir condições de vida dignas à população local e prevenir seu deslocamento forçado.

Relatório em espanhol

Relatório en inglês (English version)

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