Por Carolina Jiménez e Alicia Moncada

SAN JOSÉ DE LA COSTA, Venezuela — A última vez que Génesis Vasquez ouviu a voz do marido, ele estava prestes a embarcar em um pequeno barco de madeira partindo da Venezuela para a ilha vizinha de Curaçao. Incapaz de encontrar um trabalho permanente no país e lutando para sustentar sua família, Jóvito Gutiérrez Yance esperava encontrar novas oportunidades no exterior.

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“Ore por mim e acenda uma vela,” ele pediu a Génesis antes de se despedir e se juntar a outros 30 passageiros na lotada e frágil embarcação.

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Eles deixaram o porto de San José de La Costa pouco antes do amanhecer.

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O barco nunca chegou a Curaçao. Embocou perto da costa sudeste da ilha em 10 de janeiro. Operações de busca e salvamento lideradas pelas autoridades de Curaçao foram prejudicadas porque o governo venezuelano havia ordenado o desligamento temporário do tráfego aéreo e marítimo com Curaçao e outras duas ilhas vizinhas poucos dias antes. Equipes de resgate recuperaram apenas cinco corpos. Os demais, incluindo Jóvito, ainda estão desaparecidos.

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“Ele foi por nós, pelos nossos sonhos,” Génesis disse em um dia quente e sufocante em sua casa no noroeste da Venezuela. O casal não podia se dar ao luxo de ter os filhos que queriam, ela explicou. Agora, tudo o que Génesis pode fazer é esperar por notícias. O sonho de ter uma família foi destruído.

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Venezuela está no meio de uma crise humanitária que tem forçado as pessoas a enfrentarem uma viagem desesperada e arriscada, de quase 100 km, para Curaçao, uma ilha holandês-caribenha, na busca por segurança e subsistência. Muitos estão fugindo de perseguição política após uma repressão do governo que resultou na morte de pelo menos 120 manifestantes.

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Génesis Vasquez mostra uma foto de seu marido, Jovito Gutiérrez. Foto: Roman Camacho

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Alguns estão indo embora pois já não conseguem alimentar suas famílias devido à inflação e escassez crônica de alimentos. Outros partiram em busca de serviços de saúde e medicamentos que não estão mais disponíveis na Venezuela. O naufrágio em janeiro foi um sinal do quão desesperadora é a situação.

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Agora, a esposa de Jóvito está presa num limbo tortuoso sem notícias de seu marido. Os pais de Jeanaury Jiménez, de 18 anos, cujo corpo foi recuperado após o naufrágio, estão tentando balancear o luto com as preocupações acerca do futuro.

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Jeanaury já havia sido deportada de Curaçao antes, e a garota havia prometido aos pais que não realizaria novamente a viagem arriscada. Mas quando suas irmãs gêmeas nasceram prematuras, a família teve dificuldades para alimentá-las. Jeanaury decidiu retornar a Curaçao na esperança de conseguir trabalho.

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Dias após o corpo de Jeanaury ter sido encontrado, sua mãe andava pela casa da família, na cidade costeira de La Veda de Coro, com as bebês gêmeas nos braços. Ela não encontra leite ou fórmula infantil para elas. O pai encara o chão enquanto explica que seu salário como motorista de caminhão já não é mais o suficiente para arcar com as necessidades da família. Fotos de Jeanaury estão penduradas nas paredes da sala de estar.

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Enquanto famílias como a de Jeanaury se perguntam de onde virá a próxima refeição, rotas de saída da Venezuela se tornam cada vez mais inacessíveis. Os custos de uma passagem de avião ou mesmo por terra são muito altos para a maioria das pessoas, enquanto que o fechamento intermitente das fronteiras fez surgir rotas clandestinas perigosas controladas por contrabandistas. Mulheres, crianças, adolescentes e comunidades indígenas estão particularmente vulneráveis às preocupações de saúde e segurança.

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Muitos países vizinhos carecem de um sistema de asilo que auxilie na chegada dos venezuelanos, e o número tem sido um desafio para os controles de imigração nos últimos anos. Em 2016, a governadora de Curaçao, Lucille George-Wout, fez um discurso inflamado alegando que “quase todas as pessoas que chegam são exclusivamente das áreas de delinquência, trabalho ilegal e prostituição.”

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Casa de Normelys Danny, em La Vela de Coro, Venezuela. O corpo de Danny foi um dos identificados depois do acidente. Foto: Roman Camacho

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Pessoas continuam saindo, dispostas a arriscar discriminação e a viagem perigosa pela chance de uma existência mais segura. Desde 2014, de acordo com o Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados, pelo menos 145 mil venezuelanos solicitaram asilo no exterior. Outras 444 mil recorreram a acordos fora do sistema de asilo, que lhe permitiriam viver e trabalhar em outro país por um longo período.

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A família Razz, de La Vela de Coro, na costa noroeste da Venezuela, sabe melhor do que a maioria o quão perigosa pode ser a jornada de saída do país. Normelys, 34, perdeu o marido, Danny, no naufrágio fatal em 10 de janeiro. Sua irmã mais nova, Nereida, ainda espera por notícias de seu marido, Oliver, que está desaparecido. Ambos os homens estavam a caminho de Curaçao em busca de trabalho, e a dupla tragédia deixou a família em circunstâncias ainda mais precárias.

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Normelys relembra a última vez que falou com o marido ao telefone antes da partida. “Ele me disse: ‘Diga às nossas filhas que eu as amo; para onde estou indo, eu vou ficar bem. Não fiquem tristes,’” ela disse. “Sua voz era a de alguém se despedindo.”

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É comum que os que conseguem chegar a Curaçao sejam presos e deportados e que façam várias tentativas de voltar para lá novamente. Danny esteve em Curaçao duas vezes antes, e até havia conseguido economizar o suficiente para abrir um negócio de moto-taxi na Venezuela, mas contínuos problemas financeiros o fizeram fugir para a ilha outra vez.

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Neyra, uma terceira irmã Razz, passou dois meses vivendo na ilha sem documentos em 2017. Ocasionalmente, ela limpava casas em troca de dinheiro, mas batidas policiais eram uma preocupação constante. Eventualmente ela foi presa, detida por duas semanas e enviada de volta para a Venezuela.

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Como muitas pessoas, Neyra foi a Curaçao na esperança de comprar o básico, como comida e medicamentos que não estão mais disponíveis na Venezuela. Ela logo percebeu que as coisas não eram tão simples para aqueles sem os documentos válidos.

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“Minha vida lá era horrível,” Neyra disse. “Eu queria trazer remédios, comida, mas não me deixavam comprar os medicamentos sem um registro médico. Você se sente completamente impotente.”

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Nereida mostra um cartaz desenhado pelos filhos para o pai, Oliver. Ele é um dos muitos imigrantes que sumiram após a tragédia. Foto: Roman Camacho

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A Venezuela tem ignorado ligações internacionais para resolver as causas da crise de direitos humanos que está forçando as pessoas a sair e se recusou a aceitar a cooperação internacional para garantir o acesso a alimentos e medicamentos. Em vez disso, o governo está dobrando as medidas repressivas, tornando insuportável a vida para os que ficam.

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O Estado venezuelano tem a obrigação de respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos de todos os venezuelanos, enquanto a comunidade internacional deve fornecer um apoio à Venezuela para isso.

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Países vizinhos partilham a responsabilidade de chegar a soluções regionais. De fato, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos solicitou aos Estados a implementação de mecanismos de proteção e tratamento humanitário de imigrantes e refugiados. Peru, Brasil e Colômbia deram alguns passos em direção a isso, mas é preciso fazer muito mais para prevenir novas tragédias.

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Dois meses após o naufrágio, as famílias dos que permanecem desaparecidos estão pedindo às autoridades venezuelanas e curaçantes que continuem procurando e que realizem testes de DNA nos corpos que ainda não foram identificados. Eles dizem que seus pedidos foram recebidos com silêncio.

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“A Venezuela não está bem,” Nereida Razz disse. Ainda não há notícias sobre seu marido. Mas mesmo desolada, Nereida entende por que Oliver teve que partir. “Ele partiu em busca de algo melhor, porque viver desse jeito partia seu coração.”

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Você pode ajudar a pôr um fim na crise humanitária da Venezuela. Assine a petição e peça que seja ativada uma cooperação internacional para que tenha fim a crise de saúde e alimentos na Venezuela.

Assino pelo fim da crise humanitária na Venezuela

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Carolina Jiménez é vice-diretora de pesquisa da Anistia Internacional das Américas. Alicia Moncada é responsável pelo projeto de direitos econômicos, sociais e culturais da Anistia Internacional.