Presidente Michel Temer sancionou, em 16 de outubro, a Lei que transfere para justiça militar o foro para julgamento dos crimes cometidos por militares contra civis. A nova lei agora em vigor faz com que a atual legislação brasileira volte no tempo, equiparando-se ao ordenamento válido durante o regime militar. Sob o argumento da necessidade de segurança jurídica aos militares durante as operações de Garantia da Lei e Ordem, o Congresso Nacional e a Presidência da República optaram pelo fim do julgamento imparcial e independente para militares que cometerem crimes contra civis.

Contrariando o consenso de diferentes organismos internacionais de que os tribunais militares não devem julgar membros das forças armadas e de segurança por violações de direitos humanos, a nova legislação desconsidera a orientação de que, nesses casos, a jurisdição dos tribunais militares deve ser anulada em favor da jurisdição dos tribunais civis.  Na atual conjuntura em que as forças armadas, de maneira errônea, vêm assumindo de maneira cada vez mais frequente o papel de policiamento ostensivo nas grandes cidades do país, a possibilidade de não haver julgamento imparcial e independente para os militares que comentem crimes comuns contra civis também ignora o grave histórico de violações cometidas das forças de segurança nas favelas e periferias.

Essa lei aprovada ainda se insere em um contexto mais amplo de retrocessos legislativos no campo da segurança pública e do sistema de justiça criminal que dariam “sinal verde” para graves violações de direitos humanos. Estão em tramitação no Congresso Nacional propostas como o PL 8587/2017 e o PL 7104/2014, que querem desconsiderar como crime os abusos e violações cometidos pelos agentes públicos de segurança. A Anistia Internacional repudia as iniciativas do Congresso Nacional que impedem que os perpetradores de violações de direitos humanos sejam levados à justiça.

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Entenda mais porque a lei sancionada viola os direitos humanos:

  •  I) Normas Internacionais consagradas em tratados ratificados pelo Brasil;

Após o fim do governo militar, o Brasil intensificou seu compromisso com a proteção dos direitos humanos e ratificou a alguns dos principais tratados de proteção aos direitos humanos.

É importante ressaltar que diversos órgãos como Comitê de Direitos Humanos da ONU¹, o Comitê contra a Tortura da ONU², a Corte Interamericana e Comissão Interamericana de Direitos Humanos declararam, em linguagem similar, que a jurisdição dos tribunais militares deveria limitar-se aos julgamentos de militares por crimes contra a disciplina militar.

O Relator Especial da ONU sobre execuções extrajudiciais já expressou preocupação com “julgamentos de membros das forças de segurança diante dos tribunais militares onde é flagrante a postura de evitar punições por causa de um espírito corporativista dos julgadores, o que geralmente resulta em impunidade”³.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenou o Brasil a abster-se de utilizar a jurisdição militar para investigar e julgar militares por crimes praticados contra civis. “o Estado deve garantir que as causas penais que tenham origem nos fatos do presente caso, contra supostos responsáveis que sejam ou tenham sido funcionários militares, sejam examinadas na jurisdição ordinária, e não no foro militar’.

A presente decisão refere-se ao caso conhecido como “Guerra do Araguaia”, resultado da atuação do Exército brasileiro entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar o conflito da região do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964–1985).

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  • II) A regulamentação nacional vigente e a composição do tribunal militar no país

Em 1996 foi promulgada a Lei nº 9.2992 que transferiu para justiça comum a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, alterando a competência da jurisdição militar nestes casos que vigorava até então. Nesse mesmo sentido, no ano de 2004 foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45 que alterou o parágrafo 4º do artigo 125 da Constituição Federal para determinar a competência do júri para processar e julgar os militares nos crimes praticados contra civis.

Considerada à época pelas organizações da sociedade civil e juristas um importante passo para consolidação do processo democrático no país, superando uma lógica autoritária que serviu de instrumento do governo militar contra civis.

Importante ressaltar que o Ministério Público Federal (MPF) analisou o referido projeto e apresentou parecer técnico⁵ de caráter consultivo sobre a aprovação de tal mudança legislativa indicando que o texto viola a Constituição Federal ao modificar a competência já assegurada constitucionalmente do Tribunal do Júri e afronta o princípio do juiz natural.

À luz desse princípio, passa a ser necessário considerar a falta de imparcialidade que a referida corte apresenta. O artigo 123 da Lei Fundamental dispõe que o Superior Tribunal Militar é composto por 15 Ministros, sendo 3 oficiais generais da Aeronáutica, 4 oficiais-generais do Exército e 3 oficiais-generais da Marinha. Note-se que os ministros militares do Superior Tribunal Militar não se desvinculam das Forças Armadas. Eles continuam sendo membros da ativa, conforme o estabelecido no artigo 3º, § 2º, da Lei nº 8.457/92, a qual organiza a Justiça Militar federal: “[o]s Ministros militares permanecem na ativa, em quadros especiais da Marinha, Exército e Aeronáutica”.

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  • III) O histórico das forças de armadas no papel de polícia

Os senadores na votação da matéria usaram como justificativa para sua aprovação “algumas atuações mais recentes, tais como, a ocorrida na ocasião da greve da Polícia Militar da Bahia; a ocupação do Morro do Alemão, no Estado do Rio de Janeiro, em que as Forças Armadas se fizeram presentes por longos meses; e, por fim, a atuação no Complexo da Maré, que teve início em abril de 2014.”

Vale destacar que nas ocasiões em que Rio de Janeiro vivenciou a presença das Forças Armadas e da Força Nacional o resultado não foi positivo, com o registro de casos graves de violações de direitos. Em junho de 2007, a operação no Complexo do Alemão, com o apoio da Força Nacional, resultou em 19 pessoas mortas, algumas com fortes evidências de terem sido execuções extrajudiciais segundo parecer de peritos independentes.

Já em junho de 2008, militares do Exército que faziam a vigilância de um projeto federal no Morro da Providência, foram responsáveis pela morte de três jovens, entregues pelos próprios militares a uma facção criminosa. Em dezembro 2011 um adolescente foi morto no Complexo do Alemão e os oito militares foram afastados do território pelo Comando Miliar do Leste por participação na morte. Entre 2014 e 2015 as Forças Armadas permaneceram por 15 meses no Complexo da Maré, um período marcado por conflitos constantes entre moradores, marcado pelo caso de um homem passou cinco dias em coma e teve a perna amputada depois de ser atingido por tiros de fuzil disparados pelo Exército.



¹ CDH Relatório de Conclusão das Observações da Revisão Periódica Universal – Chile, UN Doc. CCPR/C/CHL/CO/5 (2007) §12

² CAT Concluding Observations: Guatemala, UN Doc. CAT/C/GTM/CO/4 (2006) §14.

³ Relatoria Especial sobre execuções extrajudiciais da ONU Doc. A/51/457 (1996) §125

⁴ Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24 de novembro de 2010. Série C nº 219, par.257.

⁵ NOTA TÉCNICA Nº 08/2017/PFDC/MPF, disponível em <MPF>

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AGORA é o momento de falar, se organizar e se mobilizar antes que nossos direitos sejam devastados. Assine a petição Direitos não se Liquidam!