A avassaladora crise mundial de migrantes e refugiados, a maior desde a II Guerra Mundial, o drama das mortes na travessia do mar Mediterrâneo e as responsabilidades de solidariedade e de respeito pelos direitos humanos que cabem à Europa são analisadas pelo diretor da Anistia Internacional Europa e Ásia Central, John Dalhuisen, que esteve em Portugal para participar da Assembleia Parlamentar da União para o Mediterrâneo, em Lisboa.

A Anistia Internacional defende que deve haver uma abordagem completa à crise de migrantes e refugiados no Mediterrâneo. O que isso implica?

Existe uma necessidade imediata de dar resposta à crise humana no centro do Mediterrâneo, em que a prioridade tem de ser reduzir tanto quanto possível o número, cada vez maior, dos que se afogam. Mas a realidade é que quantidade nenhuma de barcos [de busca e salvamento] irá reduzir a zero aqueles que morrem nesta rota.

Por isso, a Europa deve pensar de forma muito mais abrangente sobre as maneiras como pode reduzir as pressões na rota do Mediterrâneo central: em primeiro lugar, para evitar que as pessoas a usem; mas também sobre o que mais pode fazer para assumir a sua quota justa na crise atual de refugiados, que chegou às mais altas proporções desde o fim da II Guerra Mundial, com mais de 50 milhões de pessoas deslocadas ou refugiadas no mundo inteiro.

Esses objetivos devem ser alcançados com a construção de mais rotas seguras e legais para chegar à Europa, seja isso feito através dos mecanismos de reinstalação, da concessão de vistos humanitários ou de um maior recurso aos procedimentos de reunificação de famílias – mas isto ainda é só parte do que é necessário.

Olhando de forma mais ampla para os desafios das políticas de migração, é preciso distinguir entre a crise de mortes no mar [Mediterrâneo] e a crise de refugiados. O que não há de forma nenhuma na Europa é uma crise de migração. Não estamos falando de números em uma escala que a União Europeia não consiga gerir. Isso não significa que uma política abrangente para as migrações não deva também ter em conta a forma como lidar – de maneira humana e em respeito aos direitos humanos – com as questões do controle dos fluxos irregulares de migrantes econômicos. Mas são duas coisas distintas.

A primeira tem a ver com o fato da Europa ter de fazer uma discussão muito mais honesta sobre as suas verdadeiras necessidades econômicas no que se refere às migrações. Atualmente, as políticas existentes são de restrição do acesso legal de migrantes, que resultam na exploração daqueles que chegam irregularmente, o que não é justo nem humano.

É óbvio, simultaneamente, que os países têm o direito e interesse legítimo em controlarem as suas fronteiras, e parte disso pode e deve envolver uma cooperação com os países de origem ou de trânsito de migrantes e refugiados com relação ao regresso daqueles que não têm direito ao território europeu. Garantir a existência de mecanismos justos e eficazes de regresso é uma parte importante na preservação da integridade do sistema de asilo – e as organizações de direitos humanos devem sentir-se confortáveis em dizê-lo.

Uma das soluções que tem avançado para lidar com a crise de refugiados é o plano de quotas proposto pela Comissão Europeia. Este sistema pode funcionar?

Na verdade, há dois planos diferentes, e ambos envolvem um elemento de quotas. O primeiro é um sistema de realocação dos migrantes que chegam às costas da Europa, e isso não é mais do que um redesenhar do Regulamento de Dublin. Isto reporta aos sistemas internos de procedimentos dos próprios países e provavelmente faria todo o sentido, mas cabe apenas aos Estados decidirem como o fazerem entre si.

O segundo, porém, já é um programa de reinstalação de migrantes e refugiados administrado de forma centralizada pela União Europeia, que determinaria centralmente as necessidades de reinstalação existentes, das pessoas que estão na vasta maioria em campos de refugiados atualmente, e a forma como seriam acolhidas na Europa. É uma ideia interessante e sensata; ao mesmo tempo modesta e incrivelmente radical.

No que toca à escala da crise de refugiados, aquilo que a Comissão Europeia propõe é muito reduzido: 20.000 ou mesmo 30.000 vagas é um número extremamente pequeno diante da população global de refugiados. É até pequeno em comparação com a população de refugiados apenas sírios. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados estima que é necessário reinstalar 360.000 refugiados até ao final de 2016. E a Anistia Internacional avalia que a parte que cabe à Europa neste esforço global seria de 100.000 pessoas. Por isso, à luz das verdadeiras necessidades, a proposta da Comissão Europeia é modesta demais.

Mas a forma como muda o sistema europeu para as migrações, nisso é extremamente radical, uma vez que acaba com a ideia de que os Estados-membros da UE têm controle soberano sobre a entrada de não-europeus nos seus territórios nacionais. Esta mudança é radical – o que foi claramente demonstrado com a forma veemente do Reino Unido já se opor. E seguramente que não serão os únicos, o que poderá fazer com que a proposta da Comissão Europeia falhe.

Para a Anistia Internacional a questão prende-se muito mais com a escala e a ambição dos programas de reinstalação do que com os veículos políticos com que a reinstalação é feita. Se o que daqui resultar for um mecanismo europeu de reinstalação para 20.000 pessoas e em que os Estados-membros param de fazer os seus esforços nacionais de acolhimento, acabamos com um resultado zero. Por isso é que dizemos que estas propostas não trazem melhoras significativas, são apenas pequenos passos.

Os líderes europeus também estão tentando obter nas Nações Unidas base legal para uma operação militar na Líbia com o propósito de destruir em terra os barcos dos traficantes de pessoas. Quais podem ser as consequências desta linha de ação?

A primeira questão que aqui se coloca é: para que é que essa intervenção vai servir? Pode ser argumentado que não é da área de competência nem de perícia da Anistia Internacional pronunciar-se se uma operação militar para repor a ordem e o respeito pelos direitos humanos na Líbia é justificável. Mas o problema é que não parece ser isso que está motivando a criação de uma missão militar: se o que se ouve de alguns governos europeus é que a ação militar é necessária para impedir os migrantes de chegarem aos seus territórios, estamos falando de algo muito diferente da reposição de paz e respeito pelos direitos humanos – e não vejo como pode ser justificada uma intervenção militar, que na essência vai funcionar como uma operação de policiamento de fronteiras.

É óbvio que há muito trabalho para resolver os problemas das redes de tráfico humano, só que isso não pode ser feito à custa de se encurralar as pessoas na Líbia, onde é garantido que vão sofrer abusos de direitos humanos a um nível muito significativo. O desafio aqui é o de pôr em marcha as medidas que não impeçam as pessoas de partir da Líbia, mas que reduzam o número de pessoas que entram na Líbia. Porque os perigos que migrantes e refugiados enfrentam não começam nas costas líbias, quando embarcam para atravessar o Mediterrâneo, mas sim muito, muito antes.

A Anistia Internacional tem em curso, desde 20 de março de 2014, a campanha “SOS Europa, as pessoas acima das fronteiras“, iniciativa de pressão global para que a União Europeia mude as políticas de migração e asilo, no sentido de diminuir os riscos de vida que migrantes, refugiados e candidatos a asilo correm para chegar à Europa, e garantir que estas pessoas são tratadas com dignidade à chegada nas fronteiras europeias.

Participe aqui, em inglês.  Preencha nome, sobrenome e email. Depois, basta clicar em “sibmit”.

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