O aplicativo teve mais de 50 mil downloads e funcionou como piloto em favelas do Rio de Janeiro e municípios da Baixada Fluminense

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Em seis meses de operação, o Fogo Cruzado revela a alta ocorrência de tiroteios e uso de armas no Grande Rio. Neste período foram 2517 notificações de tiros/disparos de arma de fogo, uma média de 14 por dia. Foram registradas no aplicativo pelo menos 539 vítimas fatais e 570 feridos. O balanço semestral da ferramenta, lançada pela Anistia Internacional em julho de 2016, traz um compilado das informações consolidadas entre 00:00h de 05 de julho de 2016 a 23:59 de 04 de janeiro de 2017.

Algumas favelas e periferias da cidade do Rio e sua região metropolitana foram as que mais apresentaram registros de tiroteio ou uso de arma de fogo através do aplicativo Fogo Cruzado. Um alto número de armas em circulação, conflitos entre grupos criminosos, operações policiais que usam a lógica do confronto para combater o tráfico de drogas são fatores que podem explicar o alto índice de violência armada registrado pelo aplicativo.

“A frequência de tiroteios no Rio de Janeiro é chocante. Esses primeiros seis meses do Fogo Cruzado revelam a escala e dimensão da violência armada na cidade e vêm suprir uma lacuna de dados específicos sobre o tema. O impacto dessa violência nas áreas mais afetadas da cidade, especialmente favelas e periferias, é enorme. Além das vidas perdidas, os moradores dessas áreas têm seu direito de ir e vir cerceados e sofrem com a interrupção dos serviços de saúde e educação quando há tiroteios”, comenta Renata Neder, assessora de direitos humanos da Anistia Internacional.

Em 2016, a Polícia Militar apreendeu 155 pistolas, 71 revólveres e 15 fuzis, somente em áreas com Unidade de Polícia Pacificadora. No total foram apreendidos 371 fuzis no estado. Na CPI das Armas “II”, realizada no ano passado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), foram feitas 47 recomendações para evitar roubo, furto e desvio de armamento das forças de segurança. Na primeira edição da CPI das Armas, em 2011, foram feitas 69 propostas para o enfrentamento do tráfico de armas, munições e explosivos no Estado. Um dos maiores problemas levantados foi a falta de fiscalização e controle dos paióis das polícias e de empresas de segurança, decorrente de falhas de comunicação entre os órgãos do setor.

“Em apenas seis meses, foram feitos mais de 50 mil downloads do aplicativo, o que mostra o interesse das pessoas em denunciar e incidir sobre essa realidade. Os tiroteios frequentes resultam em inúmeras violações de direitos humanos nas favelas e periferias, que são as áreas mais afetadas pela violência armada. As autoridades precisam adotar medidas urgentes para enfrentar essa realidade. O aplicativo foi lançado em fase piloto aqui no Rio de Janeiro. Mas é possível que a realidade em outros estados seja tão grave quanto aqui. Sabemos que a violência armada é um problema nacional. O Brasil tem mais de 58 mil homicídios por ano, cerca de 70% deles por armas de fogo”, destaca Renata Neder.

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Mapa das notificações

O aplicativo Fogo Cruzado – aplicativo que registra de forma colaborativa a incidência de disparos de arma de fogo – foi implementado como projeto piloto em 2016 e promovido prioritariamente junto a organizações, coletivos e defensores de direitos humanos que atuam diretamente em áreas de favelas e periferias. As áreas escolhidas para testes foram as comunidades Jacarezinho, Manguinhos, Complexo da Maré, Complexo do Alemão, Acari, Cidade de Deus e Morro Agudo (Nova Iguaçu).

O Complexo do Alemão, conjunto de favelas com cerca de 70 mil habitantes, distribuído numa área de 296 hectares (3 km2), ficou à frente de municípios inteiros no ranking de locais mais atingidos por tiroteios/disparos de arma de fogo. O bairro tem Unidades de Polícia Pacificadora desde 2012. No total, 115 registros de disparos de armas de fogo foram registrados por usuários, com pelo menos 15 vítimas fatais e 34 feridos (15 deles policiais).

A 2º região onde houve maior número de registros foi Duque de Caxias, que tem 10 vezes mais habitantes (855 mil) e é 155 vezes maior (467 KM2) que o Complexo do Alemão. O município da Baixada Fluminense teve 114 registros de tiroteios/disparos de arma de fogo, resultando em pelo menos 42 vítimas fatais e 49 feridos (8 deles policiais).

A área que ficou em 3º lugar foi a região da Penha, mais especificamente o Complexo da Penha, outra área com UPP e que é vizinha ao local com maior número de registros, o Complexo do Alemão. Nos seis meses, foram 111 registros de tiroteios/disparos de arma de fogo com 14 vítimas fatais e 22 feridos (10 deles, policiais).

Já Nova Iguaçu registrou menos tiros, mas teve o maior número de vítimas fatais: pelo menos 54 mortos. No total, foram 85 tiroteios/disparos de arma de fogo no município, o que a coloca em 4º lugar no ranking total por número de tiroteios/disparos de arma de fogo. Houve ainda pelo menos 21 feridos.

São Gonçalo é a 5º região que mais notificou tiroteios/disparos de arma de fogo: 81, com pelo menos 17 mortos e 31 feridos.

Áreas piloto e demais regiões com maior número de notificações de disparos de armas de fogo

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Serviços interrompidos

A Light – companhia de energia do Rio – divulgou que durante o ano de 2016 houve 268 interrupções no fornecimento de luz em decorrência de tiroteios no estado do Rio. De acordo com a empresa, 157 deles foram na Zona Norte da cidade do Rio, o equivalente a 58,5%.

Devido a grande incidência de tiroteios no Jacarezinho – que tem UPP desde 2013 -, a Supervia – operadora de trens urbanos – cogitou fechar temporariamente o ramal de Belford Roxo, que atende moradores da região. De acordo com o Jornal Voz das Comunidades, do início de 2016 até 14 de outubro a operação do teleférico do Complexo do Alemão foi suspensa 121 vezes em decorrência de tiroteios. Após esta data o serviço foi definitivamente fechado por falta de pagamento.

Com escolas, creches e EDI’s (Espaço de educação infantil) não tem sido diferente. Aulas tem sido sistematicamente suspensas devido a operações policiais e questões de segurança. Em um único dia (21/11) 7.052 alunos de escolas na Cidade de Deus – com UPP desde 2009 – ficaram sem aulas.

“O Fogo Cruzado vem suprir uma lacuna de informação dos dados da segurança pública. Até então não tínhamos a dimensão de que havia tantos tiroteios por dia. O cerceamento decorrente da violência armada é uma violação de direitos. O preço que pagamos por esta violência armada precisa ser recalculado, levando em consideração os danos diários. As políticas públicas precisam levar isso em consideração”, reitera a pesquisadora e gestora de dados do aplicativo, Cecília Olliveira.

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Guerra de facções em áreas com UPP

Para além dos Complexos de favelas do Alemão e Penha, outras áreas com UPP apresentaram um número considerável de tiroteios / uso de arma de fogo no período analisado. As informações compiladas via imprensa, coletivos locais e canais de comunicação da PMERJ mostram que entre setembro e outubro os morros do Turano e da Coroa, do Fogueteiro e Fallet vivenciaram disputas de facções, que resultaram em intensos tiroteios e deixaram mortos e feridos.

No dia 10 de outubro, sete favelas / áreas com Unidade de Polícia Pacificadora registraram confrontos armados: Complexo do Alemão, Borel, Chatuba, Complexo do Lins, Cidade de Deus, Pavão-Pavãozinho e Cantagalo. Na zonal sul, ruas foram interditadas, o comércio de Ipanema e o metrô da área foram fechados e500 crianças ficaram sem aulas.

“Chama atenção o fato de que as áreas ‘pacificadas’ de Penha e do Alemão totalizem pelo menos 29 mortos e 56 feridos, sendo 4 policiais mortos e 25 feridos. Na teoria, estas áreas deveriam se destacar como um exemplo de uma nova abordagem de segurança pública, não pela incidência de violência armada. No entanto, o projeto das UPPs não demonstra fôlego para interromper abusos. Pelo contrário, expõe de forma acentuada um modelo calcado no confronto, causando perdas irreparáveis para os moradores”, analisa Cecília Olliveira.

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Período Olímpico

Mesmo com o forte aparato de segurança destacado para a #Rio2016, o período olímpico – 05 a 21/08 – registrou números alarmantes compilados no aplicativo Fogo Cruzado: foram 92 tiroteios/disparos de arma de fogo com pelo menos 31 vítimas fatais, dos quais 6 eram agentes públicos de segurança e 51 pessoas feridas, sendo 28 agentes públicos de segurança. Total de 82 pessoas baleadas em 16 dias, ou uma média diária de 5.1 feridos durante as Olimpíadas. Neste período, a Polícia Militar se envolveu em 217 tiroteios no Estado e informou que 12 pessoas foram mortas por agentes da corporação na cidade do Rio (Fonte: Um legado de violência: homicídios praticados pela polícia e repressão a protestos na Olimpíada Rio 2016).

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Semana mais violenta

A semana com o maior número de mortos e feridos registrada pelo aplicativo – especialmente com base nas informações da PM e Imprensa – foi entre 19 e 26 de novembro, quando 20 pessoas morreram (5 deles Policiais Militares) e 26 ficaram feridas, 6 deles PMs e 2 policiais civis. A maioria dos agentes de segurança foram baleadas em tentativas de assalto: 3 mortos e 5 feridos.

O caso mais emblemático ocorreu no dia 20/11, quando sete jovens foram encontrados mortos na Cidade de Deus, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, após longa operação policial que começou na manhã de sábado. Os jovens estavam desaparecidos desde a operação policial de sábado e foram encontrados por familiares e moradores em um terreno baldio / mata na favela. A operação policial, que seguiu durante o domingo, resultou em horas de intenso tiroteio, deixando moradores da favela expostos a uma situação de alto risco. As vias de acesso à favela foram cercadas pela polícia e moradores descreveram que estavam “sitiados”, “ilhados” e temendo por mais horas de violência. Durante a operação no sábado, um helicóptero da Polícia Militar caiu resultando na morte dos quatro policiais que estavam a bordo.

No dia 24, pelo menos 15 pessoas ficaram feridas e uma morreu em duas tentativas de assalto em Duque de Caxias.

No dia 26, em Bangu, um tiroteio deixou 3 pessoas feridas.

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Motivação dos disparos de arma

Nem todos os tiroteios/disparos de arma de fogo – apurados junto à imprensa e a PMERJ – tem uma justificativa aparente ou já divulgada. Dentre os motivos mais comuns apontados por estes canais estão: Operação Policial (192); Confronto (102) e assalto/tentativa de assalto (96).

Agentes públicos de segurança morreram mais em decorrência de assaltos/tentativas de assalto (22) do que em confrontos (4) e operações (1). A proporção é a mesma para feridos: 23, 16 e 15, respectivamente.

Motivações de disparos

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Metodologia e continuidade do Fogo Cruzado

Além das notificações compartilhadas colaborativamente pelos usuários, o relatório do aplicativo Fogo Cruzado inclui dados coletados via imprensa e canais da própria polícia, como os boletins diários publicados no site da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Mais de 50 mil downloads gratuitos do aplicativo já foram feitos nas plataformas Android e iOS desde o lançamento em julho de 2016.

As informações via Imprensa e canais de comunicação da Polícia Militar do Rio de Janeiro – compiladas e inseridas no mapa pela equipe do Fogo Cruzado – representam um total de 758 notificações e indicam 316 vítimas fatais, 426 feridos, sendo mencionadas 218 operações policiais. Das 316 vítimas fatais deste semestre, 52 eram agentes públicos de segurança. Outros 90 foram baleados.

Do total de 3007 notificações foram enviadas por usuários neste período; destas, 490 foram descartadas por serem repetidas, incompletas ou relatarem ocorrências em cidades fora da atual área de cobertura do aplicativo.

Esse balanço marca o encerramento da fase piloto, que foi até dezembro. Em breve serão anunciadas novas mudanças na gestão do aplicativo.

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Sobre o aplicativo Fogo Cruzado

Esta iniciativa foi lançada como parte da campanha “A violência não faz parte desse jogo!“, que denunciou os riscos de aumento de violações de direitos humanos antes e durante os Jogos Olímpicos Rio 2016. O trabalho de monitoramento dos tiroteios e disparos de armas de fogo vai continuar. O objetivo é manter a divulgação periódica dos dados do Fogo Cruzado. Além dos boletins semanais, balanços mensais e semestrais trarão informações adicionais sobre o impacto da violência armada em serviços da cidade como transporte e funcionamento de escolas.

*Retificação realizada em 27/01 sobre o número de tiroteios por dia. Onde se lia 18, lê-se 14.….

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