Por Brian Castner*

No início de 2020, pouco antes do coronavírus praticamente interromper as viagens internacionais, sentei-me embaixo de uma árvore de mesquita e ouvi um discurso de um general do Sudão do Sul em uma base militar fora da capital Juba. Eu estava naquele país para investigar violações ao embargo de armas, que deverá ser renovado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas neste mês. O embargo tem cerca de dois anos e, embora não tenha resolvido todos os problemas, a violência e os abusos dos direitos humanos diminuíram significativamente no país, desde que o principal fluxo de armas e munições foi sufocado.

Naquele dia, eu tinha ido ver o comandante do campo improvisado em Gorom, que deveria explicar a um grupo de diplomatas e monitores internacionais de cessar-fogo sobre seu progresso no treinamento da recém-criada Força de Proteção VIP do Sudão do Sul. Em vez disso, o general iniciou uma ladainha de reclamações; não havia suprimentos suficientes, nem mesmo roupas de cama para dormir; disse isso enquanto estava sentado em frente a uma parede de caixas de papelão fechadas, com três metros de altura e comprimento, todas cheias de colchões doados pelo Japão. Havia um certo tom de “em quem você acredita” no discurso dele.

No entanto, eu não estava lá para escutar sobre reclamações logísticas. Eu estava lá para descobrir se as armas deles haviam chegado recentemente e se, dessa forma, quebravam o embargo.

Por isso, quando o general disse que ele tinha quatro contêineres cheios de armas pequenas que ele coletou de seus soldados como parte do processo de desarmamento, eu me interessei.

Cheguei a visitar doze campos militares e de treinamento no Sudão do Sul, e esse foi o único com um arsenal nominalmente estabelecido. Aquela era a minha melhor chance até então. Porém, quando um dos oficiais do general abriu os quatro contêineres para mim, eles não estavam cheios de armas. Eles estavam estufados até o teto com sacos de arroz e durra, uma espécie de grão. As unidades não estavam se desarmando. Elas estavam se precavendo para o retorno da guerra.

O general não se desculpou: “Essas são as forças que imporão a paz em Juba”, disse ele. “Esses soldados são a espinha dorsal dessa paz.” Disse em voz alta o que muitos temem: mesmo após tanto derramamento de sangue na guerra civil do Sudão do Sul, quando existe a chance de um acordo negociado, os generais ainda buscam a paz na ponta de um rifle.

Em 23 de março, em face de uma crescente crise mundial da saúde, o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu um cessar-fogo global. Basta dizer que não foi bem sucedido. À medida em que o coronavírus se espalha pelo mundo, o Sudão do Sul não é o único lugar em onde uma doença pandêmica está prestes a ocorrer de forma desenfreada em um estado de conflito endêmico. Oficialmente, o Sudão do Sul tem apenas algumas dezenas de casos confirmados. Assim também está a Síria, embora, como sabemos, isso seja, principalmente, em função do número testes realizados. Enquanto isso, no Iêmen, os casos são vertiginosos e na Somália os coveiros da capital não conseguem acompanhar o aumento da demanda. O número de casos no território controlado pelo Shabab é desconhecido. A adição do coronavírus a esses conflitos em andamento só aumenta o sofrimento humano e, mesmo assim, em tempos nos quais o mundo poderia se unir para enfrentar o vírus COVID-19, muitas guerras continuam afetando os civis.

O governo sírio e a força aérea russa continuaram a bombardear escolas e hospitais em torno de Idlib nos últimos meses. Na guerra civil na Líbia, poderes externos desde a Turquia até os Emirados Árabes Unidos bombearam mercenários e equipamentos suficientes para aumentar o número de vítimas civis ocorridas por artilharias e ataques aéreos desde o início de 2020. Do outro lado do Sahel, do Mali ao norte da Nigéria e Camarões, e em outros lugares da África, até o sul de Moçambique, grupos armados que juraram lealdade à organização que se autodenomina Estado Islâmico estão queimando aldeias e decapitando civis. No oeste de Mianmar, onde os crimes do governo contra a humanidade forçaram mais de 700 mil Rohingya a fugir para Bangladesh, os militares e os rebeldes de Rakhine continuam lutando. Em abril, um funcionário da Organização Mundial da Saúde que transportava amostras virais de coronavírus foi morto no fogo cruzado.

A violência continua também no Sudão do Sul, enquanto um grupo rebelde marginal continua sua luta contra o governo, e rivalidades inter-comunais de longa data geram sequestros e tiroteios. Enquanto isso, vítimas e sobreviventes de atrocidades em massa durante o conflito continuam sendo negados de justiça. Alimentar essa instabilidade e impunidade são violações contínuas do embargo de armas da ONU. Durante nossa investigação, encontramos munição chinesa fabricada recentemente nas mãos do temido Serviço de Segurança Nacional. Encontramos a frota de helicópteros de ataque Mi-24 do governo, que fora quebrada antes do estabelecimento do embargo,fortemente armada, recém-consertada e apta para vôo, pronta para ser usada novamente para atacar civis como havia feito durante a guerra civil. Encontramos Kalashnikovs da Europa Oriental, alguns até produzidos na antiga Alemanha Oriental, recentemente importados e nas mãos de forças do governo e da oposição.

A guerra civil no Sudão do Sul era notadamente de baixa tecnologia e apresentava atrocidades horríveis, incluindo centenas de pessoas reunidas e mortas a tiros em execuções em massa, muitas vezes ao longo de linhas étnicas. Porém, apesar de o embargo de armas não ter sido a solução definitiva, desde a sua adoção em julho de 2018 não houve um único massacre documentado em larga escala de civis, certamente não como nos primeiros dias do conflito. Alguns combates e violações dos direitos humanos continuam, mas nada comparado ao que vimos antes do embargo em 2014, quando dezenas de milhões de cartuchos de munição eram transportados por vez.

A luta contra o COVID-19 foi descrita como uma guerra. Não acho que essa definição seja precisa ou útil; aposto que a maioria de nós que experimentou a violência caótica e confusa de seres humanos se matando concordaria. As guerras destroem, mas a resposta a uma pandemia exige o contrário; um ato de construção, criando uma sociedade resiliente na qual cuidamos uns dos outros. E temos um inimigo desumano comum fora de nós mesmos para nos mobilizar: uma bola grotesca de gosma coberta de espinhos.

Infelizmente, na ONU, as antigas divisões ameaçam essa oportunidade unificadora. A desavença entre a China e os Estados Unidos suspendeu a resolução de um cessar-fogo humanitário de 90 dias que permitiria que a assistência médica da COVID chegasse a civis. E a questão dos embargos de armas acaba emaranhado nas discussões sobre a suspensão das sanções em geral. Embora seja analisado pelo mesmo conselho, o embargo de armas não deve ser visto como punitivo por natureza. Não é uma sanção direcionada, é uma ferramenta necessária para conter as violações de direitos humanos por todas as partes e não pode ser mal interpretada como impeditiva à capacidade de um país de tratar o COVID-19. Nós enfrentamos uma batalha árdua para obter o embargo de armas no Sudão do Sul, mas ainda há espaço para esperança. O Conselho de Segurança da ONU pode agir com propósito e boa vontade e ver a verdade óbvia: armas não vencem uma doença.

No início do surto de coronavírus, o Sudão do Sul era um lugar que tinha mais helicópteros de ataque do que ventiladores. Não faz sentido suspender um embargo de armas em um país frágil com um legado de impunidade por crimes de guerra e um iminente desafio à saúde pública. O Conselho de Segurança da ONU deve votar em renovar o embargo e dar aos sudaneses do Sul espaço e chance de construir uma paz baseada na justiça e no respeito pelos direitos humanos.

* Brian Castner é o especialista em armas da Equipe de Resposta a Crises da Anistia Internacional.