Todos os dias chegam notícias de mais uma tragédia em uma das rotas em que milhares de pessoas arriscam tudo para fugirem da guerra, da perseguição e da miséria. São tragédias que se repetem e que nada têm já de inesperado, perante o fracasso dos líderes europeus em providenciarem vias seguras para os refugiados chegarem ao espaço europeu. A vice-diretora da Anistia Internacional Europa, Gauri van Gulik, explica aqui porque isto é uma vergonha para toda a Europa e a urgência por mudanças na crise de refugiados.

Um solene momento de silêncio. Pelo mundo inteiro, é esta a resposta tradicional quando uma vida se perde numa tragédia.

Tem sido também uma resposta comum às tragédias que puseram fim às vidas de milhares de pessoas na Europa e no seu litoral. Pessoas mortas não por bombas na Síria, mas que morreram quando faziam viagens aterrorizantes em busca de segurança, refúgio e melhores vidas na Europa.

Mas a escala brutal e a rápida sucessão destas tragédias exigem que se quebre o silêncio.

Em uma só semana, fiquei estarrecida e horrorizada, assim como outros no mundo inteiro, face às quatro novas tragédias que se vierem somar à muito longa lista de acontecimentos que tinham já empurrado este ano um número recorde de pessoas para mortes prematuras. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, UNHCR na sigla em inglês), morreram 2.500 pessoas nas rotas em direção à Europa desde 1 de janeiro de 2015.

Em 26 de agosto, foram encontrados os corpos de 52 pessoas dentro do porão de um navio, a umas 30 milhas náuticas da costa da Líbia.

E em 27 de agosto, a polícia na Áustria encontrou 71 pessoas mortas, incluindo crianças, dentro de um caminhão abandonado na beira da principal autoestrada entre Budapeste e Viena – a polícia austríaca crê que eram sírios e que aparentemente morreram por asfixia.

Nessa mesma noite chegou a notícia de que um outro trágico naufrágio ao largo de Zuwara, na Líbia, em que morreram pelo menos 200 pessoas.

E ontem, 2 de setembro, a fotografia chocante de um menino de colo que apareceu numa praia da Turquia captou de forma global os títulos dos meios de comunicação social, dando ainda mais enfoque à atual crise de refugiados. Aquele menino e o irmão mais novo , que se crê serem oriundos da cidade síria de Kobane, estão entre as 11 pessoas que morreram quando o barco em que seguiam entrou em dificuldades na tentativa de alcançarem a ilha grega de Kos.

Mas os horrores que ocorreram ao longo desta última semana não eram inesperadas nem são únicos.

Pessoas morrem às dezenas, centenas – enfiadas em caminhões ou em barcos, ao tentarem alcançar segurança, vidas melhores – é uma trágica acusação ao fracasso dos líderes europeus em providenciarem rotas seguras de chegada à Europa. E que isto esteja aconteça quase todos os dias é uma vergonha para toda a Europa.

Na semana passada em Viena, não muito longe do local onde a polícia austríaca fez a terrível descoberta, os líderes da União Europeia (UE) estavam reunidos com as delegações de alguns Estados-membros e também de alguns países dos Balcãs ocidentais. Apesar de não estar na agenda inicial do encontro, o tratamento que está a ser dados aos refugiados na região rapidamente ganhou prioridade.

E por boas razões. No início dessa mesma semana, a Anistia Internacional tinha reportado da fronteira da Macedônia com a Grécia, onde cerca de 4.000 refugiados estavam encurralados depois de as autoridades macedônias terem fechado a passagem fronteiriça. Unidades da polícia paramilitar bloquearam a travessia com arame farpado e dispararam granadas de atordoamento contra famílias em choque que tinham fugido da guerra na Síria.

Um dos investigadores da Anistia Internacional no terreno conversou com uma mulher com quatro filhos, oriundos de Damasco, que se agarrava com toda a força ao filho mais novo enquanto as granadas de atordoamento explodiam em redor. “Isto faz-me lembrar da Síria. Os meus filhos estão aterrorizados; nunca pensei vir encontrar isto na Europa. Nunca, nunca”, lamentou ela.

Mais para cima na rota dos Balcãs, na Hungria, a polícia disparou gás lacrimogéneo dentro do lotado centro de recepção de refugiados. As autoridades húngaras estão no processo de erguer um muro de arame farpado ao longo da fronteira com a Sérvia para impedir mais refugiados de entrarem no país.

A Anistia Internacional esteve muito recentemente em Lesbos e em Kos, ilhas gregas que estão na linha da frente da crise de refugiados da Europa. As autoridades locais, sobrecarregadas já e sem recursos não conseguem dar resposta ao aumento dramático do número de pessoas que não param de chegar ao território – 33.000 a Lesbos apenas e só desde o dia 1 de agosto. Em consequência, milhares de pessoas, incluindo muitos refugiados sírios, encontram-se ali em condições muito precárias.

Todas estas crises são sintomas do mesmo problema: a Europa não está aceitando a sua responsabilidade na crise global de refugiados. Está falhando em criar rotas seguras para os refugiados, que respeitem os direitos e as necessidades de proteção das pessoas com a dignidade que merecem.

Então, o que pode ser feito? Nem mais um momento de silêncio: já tivemos mais do que os suficientes. Agora é chegada a hora de liderança.

Os líderes europeus – alguns deles, pelo menos – parecem entender a mensagem.

Na reunião de Viena, o que foi dito vai muito menos no sentido de uma “Fortaleza Europeia” e em manter as pessoas do lado de fora, e muito mais na assunção de solidariedade e de responsabilidade.

A vice-presidente da Comissão Europeia, Federica Mogherini, não podia ter sido mais clara nas declarações que fez no final do encontro. A Europa tem “a obrigação legal e moral” de proteger os requerentes de asilo, disse.

São sem dúvida as palavras certas. Mas que, agora, têm de ser acompanhadas por ações.

A Anistia Internacional insta a esta abordagem europeia há anos, mas os acontecimentos recentes demonstram que ela nunca foi tão urgente como agora. Estaremos chegando em um ponto de mudança?

Os líderes europeus a todos os níveis têm de intensificar esforços e providenciar proteção para mais pessoas, partilhar melhor as responsabilidades e mostrar solidariedade a outros países e àqueles que estão em maior necessidade.

Essa resposta tem de envolver, pelo menos, um aumento significativo no que toca à relocalização de refugiados – e as propostas feitas até agora ficam muito aquém, por exemplo, do acolhimento dado pela Turquia a 1,8 milhões de refugiados sírios. E também tem de integrar a concessão de mais vistos humanitários e mais mecanismos de reunificação de famílias.

Qualquer coisa menos do que isso será um falhanço moral e de direitos humanos com proporções trágicas – algo sobre o qual não podemos mesmo ficar em silêncio.

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