As autoridades do Camboja devem proporcionar justiça aos mortos, desaparecidos e feridos que foram agredidos pelas forças de segurança durante as operações antiprotestos, disse hoje (4) a Anistia Internacional em um novo relatório.

O “Taking to the streets” (Tomando as Ruas) documenta como nenhum funcionário ou membro das forças de segurança foi responsabilizado pela repressão brutal aos protestos no Camboja, inclusive a repressão ocorrida por conta das disputadas eleições de 2013.

“Os manifestantes no Camboja tiveram que enfrentar cassetetes e, por vezes, balas para expressar suas opiniões. Nos últimos dois anos, as pessoas tomaram as ruas para exigir seus direitos como nunca antes, mas as autoridades normalmente responderam com repressão violenta”, disse Rupert Abbott, Diretor de Pesquisa da Anistia Internacional para o Sudeste da Ásia e Pacífico.

“Nosso relatório documenta como as vítimas de graves violações dos direitos humanos pelas forças de segurança ficaram sem direito à justiça e sem soluções eficazes, enquanto os responsáveis continuam a andar livres.”

O relatório, baseado em extensa pesquisa no país, abrange um período tumultuado no qual se assistiu, talvez, às maiores manifestações na história do Camboja. No final de 2013, as pessoas foram para as ruas durante as disputadas eleições nacionais, enquanto os trabalhadores da indústria de vestuário reivindicavam aumento de seu salário mínimo.

As forças de segurança realizaram prisões arbitrárias, espancaram gravemente e às vezes assassinaram com o intuito de reprimir os protestos, até mesmo atirando em multidões com fuzis AK-47. Pelo menos seis pessoas foram mortas a tiros durante os protestos desde setembro de 2013.

No pior incidente, em 3 de janeiro de 2014, as forças de segurança abriram fogo contra manifestantes trabalhadores da indústria de vestuário, em uma manifestação que se tornou violenta na periferia da capital Phnom Penh, matando pelo menos quatro jovens – Khim Phaleap, Sam Ravy, Yean Rithy, e Pheng Kosal – com idades entre 22 e 25 anos. Dezenas de pessoas ficaram feridas.

Na mesma manifestação, um trabalhador da indústria de vestuário de 16 anos de idade, Khem Saphath, foi visto pela última vez aparentemente com um ferimento de bala em seu peito. Ele está desaparecido, presumivelmente morto, e sua família não recebeu quaisquer informações sobre as medidas tomadas para investigar seu desaparecimento forçado.

“O uso de força excessiva pelas forças de segurança nos protestos destruiu as vidas das vítimas e suas famílias. Em alguns casos, é evidente quem é o responsável e em muitos outros deve ser bastante fácil descobrir – no entanto, ninguém ainda foi responsabilizado “, disse Rupert Abbott.

Os implicados no uso de força excessiva contra manifestantes incluem a polícia, gendarmes e o exército, bem como a “para-polícia”, uma força auxiliar que a Anistia Internacional recomenda que deve ser impedida completamente de participar do policiamento de reuniões.

Mas, apesar das numerosas denúncias criminais por parte daqueles que sofreram nas mãos das forças de segurança, uma cultura de favorecimento à impunidade fez com que ninguém fosse responsabilizado por estas graves violações de direitos humanos.

Não houve justiça para o estudante universitário Hoeurn Chann, com 26 ou 27 anos de idade, um espectador de uma manifestação em Phnom Penh atingido por um tiro em 12 de novembro de 2013. Ele está paralisado da cintura para baixo devido ao fato de que um policial disparou indiscriminadamente contra os manifestantes e transeuntes e uma bala atingiu sua medula espinhal.

Em 2 de maio de 2014, os “para-policiais” cercaram, deram socos, pontapés e agrediram o repórter Lay Samean, de 27 anos de idade, com cassetetes depois que ele tentou filmá-los atacando o monge ativista Loun Sovath em um protesto em Phnom Penh. Lay Samean perdeu a consciência e ficou com uma maçã do rosto quebrada necessitando de cirurgia. Seu empregador prestou queixa, mas os tribunais arquivaram o caso no final de 2014 sem dar qualquer justificativa.

Em outro caso, quando a ativista dos direitos de moradia Bov Srey Sras apresentou uma queixa, depois de sofrer um aborto espontâneo quando foi chutada pela polícia em um protesto na capital em 27 de junho de 2012. Um oficial superior da polícia respondeu “Se ela quer de volta sua criança, eu também sou jovem”. Ela apresentou outra queixa, mas não houve qualquer resposta por parte dos tribunais.

“As autoridades do Camboja devem estabelecer um limite e quebrar este círculo vicioso de violações dos direitos humanos e impunidade, levando à justiça os responsáveis por causar essas mortes e ferimentos. Se isso não acontecer, as violações vão continuar se repetindo indefinidamente”, disse Rupert Abbott.

“A Anistia Internacional está pedindo que sejam realizadas investigações exaustivas e transparentes e, se houver provas suficientes, que os responsáveis pelo uso excessivo de força contra os manifestantes sejam processados. As vítimas dessas violações graves dos direitos humanos merecem uma resposta eficaz, inclusive por meio de compensação.”

Contexto

Assim como o uso excessivo de força por parte das forças de segurança e a impunidade de que gozam, o “Tomando as Ruas” mostra também que há um padrão recorrente de outras formas de violações dos direitos humanos quando ocorrem reuniões, incluindo a imposição de restrições arbitrárias ao direito à liberdade de reunião pacífica, legitimada por um ordenamento jurídico restritivo e pelo papel do judiciário, o qual assedia aqueles que organizam e participam de protestos pacíficos.

O relatório de 124 páginas conclui com um apelo às autoridades cambojanas para que respeitem, protejam e facilitem o exercício do direito à liberdade de reunião pacífica e fornece mais de 30 recomendações detalhadas para mudanças na legislação, políticas e práticas para ajudá-los a fazer isso.

Em maio de 2015, a Anistia Internacional reuniu-se com oficiais graduados da Polícia Nacional no Ministério do Interior do Camboja para discutir os resultados da investigação e com um funcionário graduado do Ministério da Justiça, mas, apesar das repetidas tentativas, não foi capaz de organizar reuniões com outras autoridades governamentais relevantes. A informação dada pelo Gabinete Nacional de Polícia está incorporada no relatório.

A Anistia Internacional forneceu ao governo cambojano um esboço avançado do relatório para que o assunto pudesse ser comentado, mas até o momento da publicação não tinha recebido qualquer resposta detalhada.