“Se um cliente é ruim, é preciso resolver sozinho até o fim. Você só chama a polícia quando pensa
que vai morrer. Se chamar a polícia, você perde tudo.”

(Trabalhador sexual da Noruega)

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Anistia Internacional divulga sua política de proteção às trabalhadoras e aos trabalhadoras sexuais contra violações e abusos de direitos humanos, além de quatro pesquisas sobre estes problemas em Papua Nova Guiné, Hong Kong, Noruega e Argentina.

“Os trabalhadores e trabalhadoras sexuais enfrentam um risco maior de sofrer uma vasta gama de abusos de direitos humanos, incluindo estupro, violência, extorsão e discriminação. Muito frequentemente eles recebem pouca ou nenhuma proteção da lei ou meios para reparar essas injustiças,” explica Tawanda Mutasah, Diretor Sênior para Leis e Políticas da Anistia Internacional.

“Nossa política destaca as formas pelas quais os governos podem fazer mais para proteger os trabalhadores sexuais de violações e abusos. Nossa pesquisa destaca os testemunhos e problemas que essas pessoas enfrentam diariamente.”

Política

A política da Anistia Internacional é o auge de consultas extensas feitas em âmbito mundial, configurando-se em um exame cuidadoso de evidências sólidas, padrões internacionais de direitos humanos e uma pesquisa inédita, realizada ao longo de mais de dois anos.

A adoção formal e a publicação desta política seguem uma decisão democrática tomada pelo movimento global da Anistia Internacional em agosto de 2015, que está disponível aqui e foi amplamente divulgado na época.

A política faz vários apelos aos governos para que eles garantam a proteção contra exploração, coerção e outros perigos; a participação dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais no desenvolvimento de leis que afetem sua vida e segurança e o fim da discriminação, além do acesso à educação e opções de emprego para todos.

Ela também recomenda a descriminalização do trabalho sexual consensual, incluindo as leis que proíbem as atividades associadas a ele, como a proibição de comprar, incitar e a organizar o trabalho sexual como um todo. Isso se baseia em evidências de que essas leis geralmente fazem trabalhadores e trabalhadoras sexuais se sentirem menos seguros e dão impunidade a quem agride esses trabalhadores, que geralmente têm muito medo de serem punidos ao denunciar o crime à polícia. As leis sobre o trabalho sexual deveriam se concentrar em proteger as pessoas de exploração e abusos em vez de tentar proibir todo e qualquer trabalho desse tipo e punir os trabalhadores e trabalhadoras sexuais.

A política reforça a posição da Anistia Internacional que o trabalho forçado, a exploração sexual infantil e o tráfico de pessoas são abusos repugnantes dos direitos humanos, exigindo ação coordenada e que, sob as leis internacionais, devem ser criminalizados em todos os países.

“Queremos leis que tenham outro foco e deixem a vida dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais mais segura, além de melhorar o relacionamento deles com a polícia, sem deixar de abordar o problema gravíssimo da exploração. Nosso objetivo é fazer com que os governos garantam que ninguém seja coagido a vender sexo ou não consiga deixar o trabalho sexual, caso escolha isso,” defende Tawanda Mutasah.

Pesquisa

Pesquisas extensas, incluindo quatro relatórios geograficamente específicos divulgados hoje, junto com a política da Anistia Internacional, mostram que trabalhadores e trabalhadoras sexuais estão frequentemente sujeitos a abusos terríveis dos direitos humanos. Isto ocorre em parte devido à criminalização, que ameaça e marginaliza ainda mais essas pessoas e impede que elas se protejam da violência e procurem assistência social.

“Trabalhadores e trabalhadoras sexuais nos disseram que a criminalização permite que eles sejam perseguidos pela polícia e não tenham suas denúncias e segurança vistas como prioridade,” diz Tawanda Mutasah.

Em vez de se preocupar em proteger trabalhadores e trabalhadoras sexuais da violência e do crime, os agentes da lei em vários países se concentram em proibir o trabalho sexual através de monitoramentos, perseguições e incursões.

A pesquisa da Anistia Internacional mostra que trabalhadores e trabalhadoras sexuais conseguem pouca ou nenhuma proteção de abusos ou injustiças jurídicas, mesmo em países onde o ato de vender sexo em si é legalizado.

 

Papua Nova Guiné

Em Papua Nova Guiné, é ilegal viver dos ganhos do trabalho sexual e organizar o comércio sexual. A homossexualidade também é criminalizada, sendo a principal base para processar trabalhadores sexuais do sexo masculino.

A pesquisa da Anistia Internacional descobriu que estas leis criminais permitem que a polícia faça ameaças, pratique extorsões e detenha arbitrariamente trabalhadores e trabalhadoras sexuais.

Trabalhadores e trabalhadoras sexuais em Papua Nova Guiné são extremamente estigmatizados, discriminados e vítimas de violência, incluindo estupro e assassinato. Uma pesquisa realizada por acadêmicos em 2010 descobriu que, em um período de seis meses, 50% dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais da capital de Papua Nova Guiné, Port Moresby, foram estuprados por clientes ou policiais.

A Anistia Internacional ouviu depoimentos angustiantes de pessoas que foram estupradas e sofreram abusos sexuais por parte de policiais, clientes e outros, mas que sentiram medo de denunciar estes crimes por serem eles mesmos considerados “ilegais.”

Mona, trabalhador sexual e sem-teto, contou à Anistia Internacional: “A polícia começou a espancar meu amigo [um cliente] e eu… Seis policiais fizeram sexo comigo, um a um. Eles estavam armados, então eu tive que ceder. Não tenho qualquer apoio para ir aos tribunais e denunciá-los. Foi muito doloroso, mas deixei para lá. Se eu procurar a polícia, eles não podem me ajudar, pois o trabalho sexual é contra a lei em Papua Nova Guiné.”

A polícia em Papua nova Guiné utilizou a posse de preservativo como prova contra trabalhadores e trabalhadoras sexuais, que geralmente são estigmatizados por “espalharem doenças.” Isto desestimula vários trabalhadores e trabalhadoras sexuais a procurar informações sobre saúde sexual e reprodutiva, incluindo as relacionadas ao HIV/AIDS.

A trabalhadora sexual Mary explica: “Se os policiais encontram preservativos quando nos capturam ou prendem, eles nos espancam e alegam que estamos promovendo o sexo ou espalhando doenças como o HIV. A polícia pede dinheiro, faz ameaças ou exige uma determinada quantia. Nós damos porque temos medo e se não aceitamos, eles podem nos espancar.”

 

Hong Kong

Em Hong Kong, vender sexo não é ilegal caso a pessoa trabalhe em um apartamento particular. Contudo, os trabalhadores e trabalhadoras sexuais ficam isolados e em situação vulnerável, correndo risco de roubos, agressões físicas e estupros.

Como disse o trabalhador sexual Queen à Anistia Internacional:

“Nunca denunciei crimes como estupro porque tenho medo de ser processado.”

Não só os trabalhadores e trabalhadoras sexuais de Hong Kong recebem pouca proteção da polícia, como às vezes são deliberadamente perseguidos por ela.

A pesquisa da Anistia Internacional mostra que policiais geralmente abusam do poder de abordar e punir trabalhadores e trabalhadoras sexuais por meio de armadilhas, extorsão e coerção. Policiais disfarçados têm permissão para receber determinados serviços sexuais ao longo da investigação para usar como prova. A Anistia Internacional também registrou instâncias da polícia ou indivíduos se dizendo policiais dizendo a trabalhadores e trabalhadoras sexuais que poderiam evitar punições mediante fornecimento de dinheiro ou sexo “grátis” a eles.

Trabalhadores sexuais transgênero estão sujeitos a práticas policiais especialmente abusivas, incluindo revistas corporais invasivas e humilhantes feitas por agentes do sexo masculino em mulheres transgênero.

“Acontecem muitas apalpadas e deboches,” relatou um advogado que defendeu trabalhadores sexuais transgênero em Hong Kong.

Após a prisão, trabalhadoras sexuais transgênero podem ser enviadas a presídios masculinos e unidades especiais para detentos com doenças mentais.

 

Noruega

Na Noruega comprar sexo é ilegal, mas o ato de vender sexo em si não é. Outras atividades associadas ao trabalho sexual são criminalizadas, como “promover a prostituição” e deixar que um determinado local seja usado para vender sexo.

Apesar das altas taxas de estupro e violência por parte de clientes e gangues organizadas, trabalhadores e trabalhadoras sexuais frequentemente evitam denunciar violência à polícia.

“Fui à casa de um homem que me deu dois socos no rosto e não contei à polícia. Não quero isso na minha ficha,” disse um trabalhador sexual à Anistia Internacional.

A Anistia Internacional ficou sabendo de trabalhadores e trabalhadoras sexuais que denunciaram violências na Noruega e foram despejados ou deportados por terem envolvido a polícia.

De acordo com as leis norueguesas, trabalhadores e trabalhadoras sexuais correm risco de despejos forçados porque os senhorios podem ser processados caso o local alugado por eles seja utilizado para vender sexo.

Segundo o representante de uma organização norueguesa em prol dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais, “Se os senhorios não expulsarem os inquilinos, a polícia registra uma queixa criminal contra eles… A polícia estimula os senhorios a fazer justiça com as próprias mãos.” 

Pessoas que fazem trabalhos sexuais também não conseguem se unir para garantir a própria segurança ou contratar serviços de segurança de terceiros, pois isso se qualificaria como “promover a prostituição” de acordo com a lei.

 

Buenos Aires, Argentina

Formalmente, comprar ou vender sexo em Buenos Aires não é ilegal, mas na prática os trabalhadores e trabalhadoras sexuais são criminalizados por uma série de leis que pune atividades relacionadas e não distinguem o trabalho sexual consensual do tráfico de pessoas.

A pesquisa da Anistia internacional descobriu que trabalhadores e trabalhadoras sexuais em Buenos Aires evitam ao máximo denunciar as violências que sofrem à polícia.

“Ele [um cliente] me pagou e eu já ia sair do carro quando ele me pegou pelo pescoço e me esfaqueou. Dei todo o dinheiro que tinha e o meu celular e ele me deixou ir embora,” contou a trabalhadora sexual Laura, que atua na rua, à Anistia Internacional.

Segundo ela, denunciar a agressão ou o roubo à polícia seria perda de tempo: “[Eles] não iam me ouvir porque trabalho na rua.”

Trabalhadores e trabalhadoras sexuais costumam ser arbitrariamente abordados nas ruas pela polícia, sendo que alguns recebem diversas multas e ficam em liberdade condicional por várias vezes. A polícia e os promotores de Buenos Aires não podem levar em conta a aparência, as roupas ou modos de um indivíduo ao aplicar a lei que criminaliza comunicações em público sobre trabalho sexual. Porém, isso ocorre em larga escala, com a polícia visando especificamente os trabalhadores sexuais transgênero em suas operações.

Os trabalhadores e trabalhadoras sexuais que atuam em acomodações particulares geralmente estão sujeitos a inspeções longas e violentas nas incursões policiais feitas em Buenos Aires, além de extorsões e subornos.

Os trabalhadores e trabalhadoras sexuais em Buenos Aires também relataram dificuldades no acesso aos serviços de saúde, sendo intensamente estigmatizados e discriminados.

“Não tivemos acesso a serviços de saúde porque éramos motivos de chacota nos hospitais ou os últimos a ser atendidos pelos médicos,” contou um ex-trabalhador sexual transgênero a Anistia Internacional.

A Anistia Internacional descobriu que isso levou alguns trabalhadores e trabalhadoras sexuais a evitar completamente os serviços de saúde.

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Sem justificativa para abusos

“Em vários lugares do mundo os trabalhadores e trabalhadoras sexuais não contam com a proteção da lei e sofrem abusos terríveis de direitos humanos. Esta situação nunca pode ser justificada. Os governos devem agir para proteger os direitos humanos de todos, incluindo trabalhadores e trabalhadoras sexuais. A descriminalização é apenas uma das várias etapas necessárias que os governos precisam realizar a fim de garantir que estas pessoas estejam protegidas do perigo, da exploração e da coerção,” diz Tawanda Mutasah.