A grande escala e a natureza assustadoramente orquestrada de dezenas de milhares de desaparecimentos forçados realizados pelo governo sírio ao longo dos últimos quatro anos são expostas em um novo relatório da Anistia Internacional publicado nesta quinta (5).

Entre a prisão e a sepultura: Desaparecimentos Forçados na Síria revela que o Estado está lucrando com os desaparecimentos forçados generalizados e sistemáticos, que constituem crimes contra a humanidade, através de um mercado clandestino insidioso em que os membros da família desesperados para descobrir o destino de seus parentes desaparecidos são cruelmente explorados para obtenção de dinheiro.

“Desaparecimentos forçados perpetrados pelo governo são parte de um ataque generalizado contra a população civil friamente calculado. Estes são crimes contra a humanidade, parte de uma campanha cuidadosamente orquestrada e projetada para espalhar o terror e suprimir o menor sinal de dissidência em todo o país”, disse Philip Luther, diretor do Programa da Anistia Internacional para o Oriente Médio e Norte da África.

“Este relatório descreve em pormenores de partir o coração a devastação e o trauma das famílias de dezenas de milhares de pessoas que desapareceram sem deixar vestígios na Síria e sua exploração cruel visando o ganho financeiro.”

A escala dos desaparecimentos é angustiante. A Rede Síria de Direitos Humanos documentou pelo menos 65.000 desaparecimentos desde 2011 – 58.000 deles civis. As pessoas sequestradas pelo governo geralmente são mantidas em celas superlotadas, em condições terríveis e sem contato com o mundo exterior. Muitos morrem como resultado de uma doença fulminante, de tortura e de execução extrajudicial.

Os desaparecimentos forçados tornaram-se tão comuns na Síria que deram origem a um mercado clandestino no qual “intermediários” ou “corretores” recebem subornos que variam de centenas a dezenas de milhares de dólares, pagos por familiares desesperados para descobrir o paradeiro de seus entes queridos ou até mesmo para saber se eles ainda estão vivos. Esses subornos se tornaram “uma grande parte da economia”, segundo um ativista de direitos humanos sírio. Um advogado de Damasco também disse à Anistia Internacional que os subornos são “uma fonte de dinheiro para o regime… uma fonte de recursos com a qual o regime passou a contar”.

Entre as pessoas que desapareceram à força incluem-se opositores pacíficos do governo, como manifestantes, ativistas de direitos humanos, jornalistas, médicos e trabalhadores humanitários. Outras pessoas têm sido alvo porque se atribui a elas deslealdade para com o governo ou porque seus parentes são procurados pelas autoridades.

Em alguns casos, especialmente nos últimos dois anos, os desaparecimentos forçados têm sido utilizados de forma oportunista como um meio para acerto de contas ou para o ganho financeiro, alimentando ainda mais o ciclo de desaparecimentos.

Algumas famílias já venderam sua propriedade ou abriram mão de suas economias da vida inteira para pagar subornos para descobrir o destino de seus parentes – às vezes em troca de informações falsas. Um homem cujos três irmãos desapareceram em 2012 disse à Anistia Internacional que tinha tomado emprestado mais de US$ 150.000 em tentativas fracassadas para saber onde eles estão. Ele está agora na Turquia trabalhando para pagar suas dívidas.

“Além de destruir vidas, os desaparecimentos estão impulsionando uma economia de mercado clandestino de suborno que comercializa o sofrimento das famílias que perderam um ente querido. Eles ficam com enormes dívidas e um buraco onde um ente querido costumava estar”, disse Philip Luther.

Os membros da família que tentam obter informações sobre parentes desaparecidos estão muitas vezes correndo risco de prisão ou sofrendo eles mesmos desaparecimentos forçados, o que lhes dá poucas alternativas a não ser recorrer ao uso de tais “intermediários”. Um homem que solicitou informações às autoridades sobre o paradeiro de seu irmão foi detido por três meses e passou várias semanas em confinamento solitário. Outro homem que foi a Damasco para procurar seu filho desaparecido foi preso em um posto de controle militar no caminho e não foi visto desde então.

Um amigo do advogado sírio de direitos humanos, Khalil Ma’touq, que sofreu desaparecimento forçado há dois anos, disse que os desaparecimentos forçados são parte de “uma grande estratégia do governo para aterrorizar o povo da Síria”. Sua filha Raneem Ma’touq também desapareceu por dois meses e teve uma experiência horrível enquanto esteve detida .

Em um caso particularmente chocante, Rania al-Abbasi, uma dentista, foi presa em 2013, juntamente com seus seis filhos com idade entre dois e 14 anos de idade, um dia depois que seu marido foi preso durante uma incursão em sua casa. A família inteira não foi vista desde então. Acredita-se que eles podem ter sido vítimas por prestarem assistência humanitária a famílias locais.

O relatório provê uma visão trágica sobre o trauma psicológico, a angústia, o desespero e o sofrimento físico experimentado por membros da família e amigos depois de um desaparecimento forçado. Saeed, cujo irmão Yusef sofreu desaparecimento forçado em 2012, disse que sua mãe agora nunca para de chorar. “Às vezes no meio da noite eu acordo e ela está acordada, olhando para a foto dele e chorando”, disse ele.

“Os desaparecimentos forçados são parte de uma campanha brutal deliberadamente realizada pelo governo sírio. Encontra-se inteiramente ao seu alcance pôr fim ao sofrimento indizível de dezenas de milhares de pessoas simplesmente ordenando que as forças de segurança cessem com a prática de desaparecimentos forçados; informem as famílias do paradeiro ou do destino de seus parentes desaparecidos; e imediata e incondicionalmente libertem todas as pessoas detidas por exercerem pacificamente seus direitos”, disse Philip Luther.

Embora alguns Estados e as Nações Unidas tenham condenado os desaparecimentos forçados, é necessário muito mais do que palavras de censura. Mais de um ano e meio atrás, em fevereiro de 2014, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 2139, que apelava para o fim dos desaparecimentos forçados na Síria, mas ainda são necessárias medidas adicionais para garantir que ele seja implementada.