Um regime de exceção, de graves violações de direitos humanos e sintetizado num verso de Chico Buarque como a “página infeliz da nossa história”. Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu longos e tenebrosos anos sob um Regime Militar alçado ao poder num golpe de Estado, em 31 de março de 1964. Hoje, 57 anos depois, a presidência da república está nas mãos de um militar do exército, que durante 30 anos como congressista se destacou, não pelas leis que aprovou, mas pelas apologias à tortura, à perseguição e mortes de opositores do regime.
A Anistia Internacional Brasil conversou com a jornalista Lygia Jobim, que teve seu pai sequestrado, torturado e morto pelos militares, em 1979, e até hoje luta por sua memória, por justiça e reparação. Além de Lygia, ouvimos o historiador Lucas Pedretti, que defende que é preciso olhar para o Regime Militar brasileiro para além da polarização política e compreendê-lo como mais uma experiência de violência do Estado brasileiro contra sua população. Ambos fazem parte do Coletivo-Rj Memória Verdade Justiça e Reparação.
“O Estado ainda me é devedor”
Meu pai estava escrevendo um livro no qual denunciaria, com provas, a corrupção na construção [da Usina] de Itaipu. Ele foi sequestrado, torturado e morto. Minha mãe e eu não pudemos ver seu corpo. Isto aconteceu em 1979, na primeira semana do governo Figueiredo. Aquele a quem Geisel delegara o direito de dizer qual opositor do regime deveria morrer, aquele que assistiu, acompanhado do general francês Paul Aussaresses, a sessões de tortura.
Diplomata aposentado, tendo servido como embaixador em vários países, não podiam entregar meu pai com marcas de tortura, nem sumir com o corpo. O penduraram numa árvore e passaram a dizer que ele tinha se enforcado. Mas não havia sinais de enforcamento. O atestado de óbito saiu como “morte por causa desconhecida”. A primeira vitória que tivemos foi cerca de sete anos depois quando o inquérito policial foi arquivado como “homicídio por autor desconhecido”. Continuamos investigando, procurando testemunhas, pois o trabalho da polícia foi nulo. Quando vimos que não havia mais nada a fazer guardei todo o material que tínhamos sobre o caso até que surgiu, já sem minha mãe, a possibilidade de enviá-lo para a Comissão Nacional da Verdade. Lá veio a segunda vitória, pois a morte foi considerada por motivação política e ele passou a integrar a relação de vítimas da ditadura. O passo seguinte foi, com base no relatório da CNV pedir à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, então presidida pela Dra. Eugênia Augusta Gonzaga, a retificação de seu atestado de óbito, o que se deu em 2018 e veio acompanhada por um pedido de desculpas do Estado. Posso dizer que tive uma reparação parcial. A reparação envolve memória, verdade, que ainda está incompleta, e justiça, que só terei quando a Lei de Anistia de 1979 for reinterpretada. O Estado ainda me é devedor. Ainda não sei quem são os responsáveis por sua morte, mas saber que poderiam ser punidos seria muito reconfortante. Afinal, a reparação envolve memória, verdade e justiça.
Se cheguei até aqui devo à frase que minha mãe me disse pouco depois do corpo de meu pai ter aparecido: “Vou até o fim nessa história porque é mentira. Ele não se matou e o país não merece mais uma mentira”. Esta frase ficou gravada. Todas as vezes em que pensei em desistir ela me vinha à cabeça e eu seguia em frente.
Lygia Jobim, jornalista e parte do Coletivo-Rj Memória Verdade Justiça e Reparação
“O período do regime militar ajuda a gente a explicar o que vivemos hoje”
Num regime formalmente democrático, há algumas décadas, o Brasil segue vivendo graves violações de direitos humanos, que atingem as populações negras e periféricas, a população LGBTQIA+ e os trabalhadores do campo. Partindo dessa premissa que nosso presente é marcado por violações de direitos humanos, o período do regime militar ajuda a gente a explicar o que vivemos hoje. Os militares no poder não fundaram essas violências na nossa sociedade. O regime de 1964-1985 é só mais um episódio de violência do Estado e de violações de direitos humanos na nossa barbárie brasileira.
Não me surpreende nem um pouco o governo federal celebrar o golpe militar. A extrema-direita brasileira sempre celebrou e soube a importância da disputa de memória. Para impor um novo regime autoritário, que retira direitos, eles precisam legitimar a ditadura (1964-1985) na memória nacional. Eles precisam reforçar a narrativa que os militares são salvadores da pátria. Um país que não faz uma revisão crítica sobre a sua história de regime autoritário, vai ter muita dificuldade de construir bases sólidas para um regime democrático no futuro.
A memória da ditadura militar que acaba registrando as vítimas da ditadura apenas como aquelas que estavam engajadas politicamente de modo muito explícito num projeto de transformação da sociedade, esconde um projeto que tinha desdobramentos no campo político, econômico, social, moral e atingiu todos os setores da sociedade.
Os militares colocaram em prática um projeto de desenvolvimento para Amazônia, que excluía os povos indígenas e os levava à morte pela abertura de estradas. Milhares de pessoas moradores de favelas foram removidos forçosamente de suas casas, em várias cidades do país. O aumento brutal da violência policial contra pessoas LGBTQIA+. Quando ampliamos nosso olhar sobre o que foi o Regime Militar e quem foram os atingidos por essa política de Estado, conseguimos derrubar o mito de que a nossa ditadura foi branda e não tão violenta assim.
Na nova República houve um lento e muito limitado processo de reconhecimento do Estado brasileiro das graves violações de direitos humanos ocorridas de 1964-1985. Esse processo passa pela criação de três grandes comissões: a Comissão especial de mortos e desaparecidos políticos, em 1995; a Comissão de Anistia, em 2002; e a Comissão Nacional da Verdade, de 2012. Hoje vivemos uma reversão nesse processo. O governo federal utiliza essas comissões para tentar reafirmar essa memória de apologia a ditadura. É preciso pensar memória, verdade, justiça e reparação desse e de outros períodos da história, como por exemplo a escravidão.
Lucas Pedretti, historiador e membro do Coletivo-Rj Memória Verdade Justiça e Reparação