Milhares de pessoas estão encarceradas em Moçambique apesar de não terem sido julgadas culpadas de nenhum crime, disse a Anistia Internacional em um relatório divulgado hoje que expõe como muitos detentos são presos sob acusações espúrias e mantidos por anos sem acesso a um advogado.
O relatório Locking up my rights: Arbitrary arrest, detention and treatment of detainees in Mozambique (Direitos detidos: prisões arbitrárias, detenção e tratamento de detentos em Moçambique) descreve como as pessoas de grupos sociais desfavorecidos correm um risco maior de serem encarceradas por meses, às vezes anos, em celas esquálidas e superlotadas, sem terem cometido qualquer crime.
O relatório – que é uma colaboração entre a Anistia Internacional e a Liga Moçambicana dos Direitos Humanos – também mostra que, na maior parte dos casos, esses indivíduos economicamente desfavorecidos não são informados dos seus direitos ou são incapazes de compreendê-los; não podem contratar um advogado e, assim, são quase sempre representados por indivíduos despreparados ou advogados pouco qualificados, e raramente podem permanecer em liberdade enquanto aguardam julgamento.
A Anistia Internacional apurou o caso de um indivíduo que foi mantido numa prisão de segurança máxima por 12 anos sem ter sido sentenciado por um crime ou ter tido qualquer audiência judicial. Aparentemente ele nem havia sido formalmente acusado de um crime.*
“A abordagem aleatória de Moçambique em relação à justiça fez com que centenas de detidos simplesmente ficassem ‘perdidos’ no sistema e definhando na prisão, sem direitos ou qualquer recurso à justiça”, disse Muluka-Anne Miti, pesquisadora da Anistia Internacional sobre Moçambique.
“Em alguns casos, os registros de prisioneiros foram completamente perdidos ou continham sérias discrepâncias.”
De acordo com as leis nacionais de Moçambique, todos os detidos devem comparecer num prazo de 48 horas perante um juiz competente, que deve verificar a legalidade de sua prisão. Além disso, cada detido deve ter acesso a um advogado gratuitamente. Na grande maioria dos casos, porém, isso simplesmente não acontece.
“Conhecemos detentos, alguns deles crianças, que foram presos sem haver qualquer sinal de um crime ter sido cometido, muito menos evidências suficientes de que eles haviam cometidos uma violação”, disse Muluka-Anne Miti.
Ana Silvia (não é seu nome verdadeiro) tinha 15 anos quando foi presa pelo assassinato de sua mãe, embora não houvesse sinais que indicassem uma morte suspeita, qualquer indício do envolvimento de Ana Silvia e de nenhuma autópsia ter sido feita. Ana Silvia contou à Anistia Internacional que depois que policiais a acusaram de ter matado sua mãe, pediram ao seu pai se podiam espancá-la para que ela contasse a verdade. Seu pai recusou, mas Ana Silvia foi para a prisão mesmo assim.
A Anistia Internacional encontrou diversas crianças que tanto afirmavam como pareciam ter menos de 16 anos. Quando questionadas sobre isso, as autoridades da prisão disseram que o ônus da prova de idade era responsabilidade dos detentos. Mas só uma pequena minoria de moçambicanos possui certificado de nascimento – é improvável que aquelas de famílias muito pobres tenham qualquer tipo de documentação.
Na Prisão Provincial de Nampula, a Anistia Internacional encontrou, em uma cela, jovens de 16 anos que não tinham representação legal. Em outras prisões, crianças que não haviam sido condenadas por nenhum crime estavam sendo detidas nas mesmas celas imundas e superlotadas com adultos que haviam sido condenados.
De modo geral, as prisões de Moçambique são superlotadas, com más condições sanitárias e serviços médicos precários e poucas oportunidades para estudo e treinamento; nenhuma para aqueles que não foram ainda julgados. Na Prisão Provincial de Nampula, a Anistia Internacional encontrou 196 pessoas amontoadas em uma cela de aproximadamente 14 por 6 metros. Os detentos lá dentro sentavam-se ombro a ombro e com os joelhos dobrados, pois era o único modo de todos caberem na cela.
“O acesso à justiça em Moçambique é sistematicamente negado àqueles sem dinheiro. As prisões estão cheias de homens jovens que ainda aguardam julgamento, para os quais não foram lidos seus direitos nem oferecido aconselhamento jurídico”, disse Muluka-Anne Miti.
“O sistema de justiça de Moçambique simplesmente não funciona para pessoas pobres, que podem passar anos definhando na prisão sem que as autoridades saibam, ou se importem, que estejam lá.”
“O objetivo de um sistema de justiça criminal é garantir que haja justiça, o que inclui garantir que aqueles que não cometeram crimes não sejam ilegalmente detidos. As autoridades de Moçambique devem assumir esta responsabilidade com mais seriedade.”
• * Jose Capitine Cossa foi libertado em setembro de 2012 após um apelo da Anistia Internacional e da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos. O Procurador-Geral admitiu que sua detenção havia sido irregular.
• 38% das pessoas nas prisões de Moçambique aguardam julgamento (aproximadamente 6415 de um total de 16.881).
• Em julho de 2012 a Anistia Internacional enviou um memorando ao Procurador-Geral instando-o a investigar alguns casos específicos destacados na pesquisa. Em resposta ao memorando, 4 indivíduos foram libertados devido a irregularidades em sua detenção. Um caso foi julgado e absolvido. Ele afirmou que não tinha registros de 9 casos e que 13 continuavam em detenção prolongada aguardando julgamento.
Direitos detidos
José Capitine Cossa (também conhecido como Zeca Capetinho Cossa)
Preso durante 12 anos sem condenação ou sequer acusação formal por um crime
No dia 16 de fevereiro de 2012, representantes da Anistia Internacional conheceram José Capitine Cossa na Prisão de Segurança Máxima de Machava, conhecida como BO (Brigada Operativa).
Ele estava no presídio desde que fora detido vendendo esculturas na beira de uma estrada na cidade de Maputo. Ele não foi condenado por nenhum crime nem teve nenhum tipo de audiência judicial. Na verdade, não parece que ele tenha sequer sido acusado de haver cometido algum crime.
José Capitine Cossa contou que, apesar de nunca haver sido condenado, estava na penitenciária de segurança máxima há mais de 12 anos. Ele não se lembra da data exata de sua prisão e detenção, mas outros detentos que foram presos desde 2001 e 2003 contaram aos representantes que ele já estava lá quando chegaram e não havia deixado a prisão desde então.
Ele não teve acesso a um advogado e não foi informado sobre a razão de sua prolongada detenção sem julgamento, nem quando poderia se defender perante um tribunal.
José Capitine Cossa permaneceu preso até sua liberação no dia 4 de setembro de 2012, após intervenções independentes por escrito da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos e da Anistia Internacional, nos dias 9 de março e 9 de agosto, respectivamente.
Em resposta a um memorando enviado pela Anistia Internacional, o Procurador-Geral declarou que a libertação de José Capitine Cossa havia sido ordenada uma vez que “havia sinais de que sua detenção havia sido irregular.” Ele declarou que uma investigação estava sendo realizada para esclarecer a situação, mas não parece que José Capitine Cossa tenha recebido qualquer indenização pelos 12 anos que permaneceu preso sem acusação nem julgamento.
Ana Silvia (nome modificado para proteger sua identidade)
Acusada e condenada pelo assassinato da própria mãe aos 15 anos. Não havia sinais óbvios de que um assassinato ocorrera no local, muito menos que Ana Silvia estivesse envolvida; nenhuma autópsia foi realizada. A polícia ameaçou espancá-la para arrancar uma “confissão”.
No dia 11 de novembro de 2010, após o funeral de sua mãe, a polícia foi à casa de Ana Silvia, de 15 anos, e ordenou que ela se apresentasse no dia 16 de novembro, na 2ª delegacia do distrito de Moamba, na província de Maputo.
Acompanhada pelo pai na ocasião, ela foi interrogada por policiais na presença do Chefe de Quarteirão (uma pessoa responsável pelas casas do quarteirão). Ela foi acusada de ter assassinado a própria mãe, que foi encontrada morta no dia 9 de novembro de 2010, apesar de não haver qualquer evidência de morte suspeita ou de envolvimento de Ana Silvia, e de nenhuma autópsia ter sido realizada.
Aparentemente a acusação contra Ana Silvia se baseou na informação fornecida pelo Chefe de Quarteirão, que declarou que Ana Silvia havia discutido com a mãe dias antes de sua morte.
De acordo com Ana Silvia, a mãe saíra de casa cedo na manhã do dia 9 de novembro, retornando apenas à noite, quando Ana já estava dormindo. No dia seguinte, a filha encontrou o corpo da mãe.
Ela contou que, depois que os policiais a acusaram de haver matado a própria mãe, perguntaram ao seu pai se deveriam bater nela para fazer com que ela contasse a verdade, mas seu pai não permitiu que fizessem isso.
Ela permaneceu detida na delegacia de polícia durante aquela noite e contou que, por volta das 19h do dia seguinte, foi transferida para a prisão distrital em Moamba, onde permaneceu presa por mais de três meses.
No dia 27 de fevereiro de 2011, ela foi transferida para a prisão civil de Maputo, onde ficou por quase cinco meses antes de ser transferida mais uma vez para o presídio feminino de Ndlhavela, no dia 18 de julho de 2011. Quando a delegação visitou Ana Silvia em 17 de fevereiro de 2012, 15 meses após sua prisão, ela dividia uma cela com mulheres adultas e ainda não havia sido julgada.
A Anistia Internacional foi informada que no dia 9 de julho de 2012, após quase 20 meses de prisão sem julgamento e apesar da falta de sinais óbvios de morte suspeita ou de uma autópsia, ela foi condenada pelo assassinato da mãe e sentenciada a um ano de prisão.
Por ter permanecido presa por mais de um ano e meio, ela foi libertada imediatamente.
No entanto, em sua resposta à Anistia Internacional o Procurador-Geral não respondeu às alegações de que nenhuma autópsia foi feita no corpo da mãe, mas declarou que Ana Silvia foi considerada culpada de estrangular a mãe e sentenciada a dois anos de prisão. Ele afirmou que ela já havia cumprido mais da metade da pena e, por isso, foi libertada sob condicional.
Hélder Xavier (nome modificado para proteger sua identidade)
Preso e acusado de roubo aos 16 anos, ele não sabe o que supostamente teria roubado. Não recebeu outras informações sobre o seu caso e não foi levado a julgamento. Os representantes da Anistia perceberam grandes contradições nos registros policiais.
Hélder Xavier, detido na prisão civil de Maputo, disse desconhecer sua exata data de nascimento, mas declarou ter 16 anos. Ele foi preso no dia 7 de agosto de 2011 em Maputo após um grupo de pessoas capturar outro indivíduo suspeito de haver cometido um roubo.
Ele contou que viu a confusão e foi ver do que se tratava. Alguém o acusou de ser cúmplice e ele foi preso pela polícia. Ele e o outro indivíduo foram levados para a 4ª delegacia de polícia e foi acusado formalmente enquanto estava na cela. No entanto, ele disse que a polícia não deu oportunidade para que se defendesse da acusação. Ele contou que foi acusado de roubo, mas que não sabe o que supostamente teria levado.
No dia 12 de agosto de 2011, ele foi transferido para a prisão civil de Maputo e acredita que o outro suspeito tenha sido libertado nesse mesmo dia. Ele foi levado ao Juiz de Instrução na prisão, que lhe disse para aguardar julgamento. Ele não recebeu nenhuma nova informação sobre seu caso e não foi levado ao juizado de menores.
Alguns membros da delegação tiveram acesso a dois documentos oficiais relacionados ao caso que demonstravam claras contradições: um deles declarava que o rapaz tinha 14 anos, enquanto o outro indicava 18, apesar de os documentos haverem sido produzidos com um intervalo de apenas seis meses.
A Anistia Internacional levou esse caso ao Procurador-Geral por meio de um memorando, mas não recebeu qualquer informação ou resposta.