Agressões, posturas em tensão, asfixia, simulação de afogamento, violência psicológica e sexual, são algumas das variadas técnicas de tortura utilizadas pelas forças de segurança marroquinas para obter “confissões” de crimes ou silenciar ativistas e sufocar a dissidência, segundo um novo informe que a Anistia Internacional publica hoje (19).
O relatório À sombra da Impunidade: Tortura no Marrocos e Saara Ocidental destaca a obscura realidade da imagem liberal que os líderes do Marrocos apresentaram quando, em 2011, responderam aos levantes populares da região com a promessa de inúmeras reformas progressistas e uma nova Constituição que proibia a tortura.
“Os líderes do Marrocos apresentam a imagem de um país liberal e que respeita os direitos humanos. Mas, enquanto paira sobre a detenção e a dissidência a ameaça de tortura, essa imagem será somente uma miragem”, disse Salil Shetty, secretário-geral da Anistia Internacional.
“Quando se risca a superfície, aparece a tortura, utilizada para silenciar o protesto e que ofusca as sentenças judiciais. Opor-se à desigualdade ou defender as próprias crenças comporta o risco de ser vítima de violência e tortura.”
O informe se baseia em 173 casos de suposta tortura e outros maus-tratos infligidos pela polícia e as forças de segurança a homens, mulheres e menores de idade entre 2010 e 2014.
Entre as vítimas estão estudantes, ativistas políticos de filiação esquerdista ou muçulmana, partidários da autodeterminação do Saara Ocidental e supostos terroristas e criminosos comuns.
O relatório mostra que existe risco de tortura desde o momento da detenção e durante todo o tempo que a pessoa fica sob custódia policial. Frequentemente, os tribunais fazem vista grossa às denúncias e emitem sentenças ofuscadas pela tortura.
Às vezes, inclusive os que se atrevem a denunciar e pedir justiça são processados por “calúnia” e “denúncia falsa”. Continua imperando a impunidade, apesar das promessas das autoridades de fazer valer os direitos humanos.
Pessoas torturadas sob custódia obrigadas a “confessar”
No informe são documentadas brutais técnicas de tortura utilizadas pelas forças de segurança contra pessoas detidas, como obriga-las a permanecer em posturas de tensão como a denominada “frango assado” (similar ao pau-de-arara) ou pendurá-las pelos punhos e os joelhos em uma barra de ferro.
Assim como outros saarianos, Mohamed Ali Saidi, de 27 anos, explicou que a polícia o havia torturado sob custódia depois de prendê-lo por manifestações ocorridas dias antes, em maio de 2013, em El Aaiún, Saara Ocidental. Ele contou o seguinte à Anistia Internacional:
“Eles ameaçaram me estuprar com uma garrafa; colocaram a garrafa na minha frente. Era uma garrafa de Pom [popular bebida marroquina]. Fui chicoteado com cordas nas solas dos pés, comigo ainda pendurado na posição de frango grelhado, e eles colocaram meus pés em água gelada […] suspenso na posição de frango assado, colocaram uma toalha na minha boca e jogaram água no meu nariz para me sufocar. Em seguida, derramaram urina. Eles me deixaram de cueca e bateram em minhas coxas com cintos.”
Abdelaziz Redaouia, franco-argelino de 34 anos, disse que os agentes o haviam torturado por se negar a assinar um relatório de interrogatório no qual se incriminava de crimes relacionados a drogas depois de sua detenção, em dezembro de 2013. Explicou:
“Eu me neguei a assinar o informe do interrogatório, então me golpearam outra vez.”
“Eu fui enganchado no interior da bochecha com uma algema, que foi puxada como se para perfurar a minha pele.”
Disse que os agentes tinham submergido sua cabeça na água, dado choques elétricos em seus órgãos genitais com uma bateria de carro, e batido nas solas dos seus pés enquanto estava pendurado.
Abusos contra manifestantes e simples transeuntes
No relatório se afirma que as forças de segurança dão mostras, sem nenhum reparo, da impunidade que parecem gozar agredindo manifestantes em plena vista para, assim, enviar uma mensagem de advertência aos que presenciam. Documentam-se às dezenas os casos de brutalidade policial cometidos contra manifestantes e simples transeuntes em plena luz do dia e em veículos.
Abderrazak Jkaou, estudante que participou das manifestações, contou que a polícia o havia agredido até perder a consciência na universidade, na véspera de uma manifestação convocada em Kenitra. Explicou:
“Alguns levavam largos tacos. Golpearam-me da cabeça aos pés. Depois, um agente à paisana agarrou uma algema com o punho e me golpeou entre os olhos. Perdi os sentidos e desabei. Depois chegaram os demais, e me pisotearam a bexiga, até que me urinei. Fui agredido até desmaiar e, então, me jogaram fora da universidade, como advertência para outros estudantes. Os estudantes pensaram que eu estava morto.”
Embora entre as pessoas que contavam ter sido detidas e torturadas houvesse ativistas conhecidos, outras eram simples transeuntes. Khadija, cujo nome foi modificado para protegê-la, conta que a policia a havia agredido quando passava pela universidade em Fez, em 2014. Disse:
“A polícia antidistúrbios se aproximou por trás e me fez tropeçar. Caí e arrancaram o lenço da minha cabeça e me agrediram. Depois me arrastaram pelas pernas, boca para baixo, até seu furgão. Dentro havia cerca de 10 outros agentes me esperando. Foi quando mais me agrediram.”
Um sistema que protege os torturadores, não as vítimas
No relatório se adverte, também, sobre uma novidade alarmante: o uso de leis que penalizam a “denúncia falsa” e a “calúnia”, para processar as supostas vítimas de tortura que denunciam seu caso. Nos últimos 12 meses, as autoridades marroquinas instauraram oito processos em aplicação a estas leis contra pessoas que interpuseram denúncias de tortura.
Segundo a legislação marroquina, a “denúncia falsa” pode ser apenada com até um ano de cárcere e uma multa de aproximadamente 500 dólares norte-americanos; a calúnia, com até cinco anos de prisão. Enquanto isso, os tribunais podem ordenar aos acusados que paguem grandes somas a título de indenização por “calúnia” e “difamação”.
Em 2014, dois jovens ativistas, Wafae Charaf e Oussama Housne, foram declarados culpados de fazer “denúncias falsas” e de difamação, e condenados a dois e três anos de prisão, respectivamente, após terem denunciado que haviam sofrido tortura. Não haviam identificado os supostos torturadores.
Quatro das pessoas levadas a julgamento pelas autoridades marroquinas haviam apresentado denúncias a tribunais franceses porque tinham dupla nacionalidade ou eram casadas com cidadãos franceses. Poderia ser impossível impetrar este tipo de ação se o Parlamento francês aprovar uma medida com a qual pretende pôr fim à competência dos tribunais da França sobre abusos cometidos no Marrocos.
“O Marrocos se encontra em uma encruzilhada: pode tomar o caminho de ter um sistema de justiça suficientemente sólido, enfrentar os responsáveis por abusos contra os direitos humanos, ou protegê-los. O governo fala em reformas, mas as autoridades parecem mais interessadas em fazer cumprir a legislação contra a calúnia que as leis contra a tortura. Para que as coisas mudem, é preciso que os torturadores sejam os que enfrentem os tribunais, e não as vítimas. Devem-se proteger, no processo, os que denunciam”, assinalou Salil Shetty.
A resposta do governo
Ao apresentar uma avaliação preliminar das conclusões do informe, o governo marroquino publicou uma longa resposta na qual as rechaçava categoricamente. Na resposta expunham os esforços oficiais para combater a tortura, incluindo as reformas judiciais previstas. Entretanto, não foram tratadas as questões traçadas pela Anistia Internacional sobre as denúncias específicas de tortura, como a falta de investigações adequadas sobre elas.
“O governo afirma que a tortura é coisa do passado. E que adotou algumas medidas, mas apenas um caso de tortura representa negligência grave. Documentamos 173 em todo o Marrocos e Saara Ocidental, e de pessoas de todas as condições”, declarou Salil Shetty.
“A legislação marroquina proíbe a tortura, mas para que esta proibição tenha significado na prática, as autoridades devem investigar devidamente as denúncias, em vez de descarta-las sem mais nem menos.”
Saiba mais
Marrocos: Torturados para confessar
Fatos e Números sobre a tortura no Marrocos e no Saara Ocidental
Informação complementar
Este relatório é parte da campanha Chega de Tortura da Anistia Internacional, com o objetivo de combater a tortura como crise global, e é continuação de outros que foram publicados sobre a tortura no México, Nigéria, Filipinas e Uzbequistão.
O Informe anual 2014/15 da Anistia Internacional sobre os direitos humanos em 160 países informa sobre tortura e outros maus-tratos em 131 deles, ou seja, 82%.
Veja aqui o relatório Shadow of Impunity: Torture in Marrocco and Western Sahara (A Sombra da Impunidade: Tortura no Marrocos e no Saara Ocidental)