As autoridades dos Estados Unidos submeteram pessoas haitianas solicitantes de refúgio a detenções arbitrárias e maus-tratos discriminatórios e humilhantes que constituem tortura baseada em discriminação racial, afirmou hoje a Anistia Internacional em seu novo relatório, ‘Não nos tratam como pessoas’: Tortura e outros maus-tratos relacionados a raça e migração contra pessoas que buscam segurança nos EUA.

Essas violações dos direitos humanos, juntamente com as expulsões em massa pela implementação do Título 42, são o capítulo mais recente de uma longa história de detenções, exclusões e tentativas de barrar as pessoas haitianos que buscam segurança nos Estados Unidos, enraizada na discriminação sistêmica contra pessoas negras.

“Um ano atrás, o governo Biden condenou as cenas vergonhosas de agentes montados da Patrulha de Fronteira que dispersavam violentamente solicitantes de refúgio haitianos em Del Rio, no Texas. Apesar disso, as autoridades estadunidenses continuam a restringir seu direito de buscar proteção internacional na fronteira dos EUA com o México”, disse Erika Guevara-Rosas, diretora da Anistia Internacional para as Américas.

“Elas também continuaram a evocar as mazelas da escravidão, acorrentando e algemando pessoas haitianas negras a bordo de voos de expulsão, impondo-lhes ainda mais dor e sofrimento mental, o que corresponde a tortura segundo o direito internacional dos direitos humanos. Nossa pesquisa apresenta ampla evidência de que o racismo sistêmico está incorporado ao sistema de migração dos EUA, conforme descrito por pessoas haitianas solicitantes de refúgio entrevistadas para este estudo.”

“Elas também continuaram a evocar as mazelas da escravidão, acorrentando e algemando pessoas haitianas negras a bordo de voos de expulsão, impondo-lhes ainda mais dor e sofrimento mental, o que corresponde a tortura segundo o direito internacional dos direitos humanos.”  – Erika Guevara-Rosas, diretora da Anistia Internacional para as Américas.

O relatório mostra que sucessivos governos estadunidenses tentaram impedir o povo haitiano de requerer asilo nos Estados Unidos por meio da aplicação de várias políticas destinadas a interceptar, deter e remover essas pessoas, que tiveram início na década de 1970 e que prosseguem com base no Título 42.

Nicole Phillips, diretora jurídica da Haitian Bridge Alliance, organização que está à frente das denúncias de maus-tratos contra pessoas haitianas por parte das autoridades dos EUA, afirmou: “Em setembro do ano passado, o mundo assistiu horrorizado às imagens que viralizaram de um oficial montado da Patrulha de Fronteira usando suas rédeas para chicotear Mirard Joseph, um dos cerca de 15.000 haitianos que buscavam proteção em Del Rio, Texas. Por mais terrível que tenha sido, esse incidente mostra apenas a ponta de um iceberg de décadas de maus-tratos infligidos contra as pessoas haitianas para dissuadi-las de buscar segurança nos Estados Unidos. Esperamos que as recomendações deste relatório suscitem um diálogo entre as autoridades estadunidenses para que ponham fim à discriminação e à tortura baseada em raça que as pessoas haitianas e outras pessoas migrantes negras costumam enfrentar no sistema de migração dos EUA”.

Todas as 24 pessoas que a Anistia Internacional entrevistou no Haiti para este relatório parecem ter sido expulsas nos termos do Título 42 entre setembro de 2021 e janeiro de 2022. Nenhuma delas teve a oportunidade de passar por uma avaliação individual pelos agentes de refúgio (o que se conhece como avaliação para determinar um “temor crível”) antes de serem enviadas de volta ao Haiti. De acordo com os testemunhos coletados, as autoridades estadunidenses chegaram a deter bebês com até nove e 14 dias de idade, em muitos casos separando essas crianças dos pais. Tais ações violam o direito internacional. As pessoas haitianas entrevistadas também declararam que não tiveram acesso a intérpretes, assistência jurídica e informações sobre o local e os motivos de sua detenção, o que constitui detenção arbitrária.

“De acordo com os testemunhos coletados, as autoridades estadunidenses chegaram a deter bebês com até nove e 14 dias de idade, em muitos casos separando essas crianças dos pais. Tais ações violam o direito internacional.”

Além disso, nenhuma das pessoas haitianas entrevistadas pela Anistia Internacional informou ter sido testada para a Covid-19 ou recebido oferta de vacina em qualquer momento de sua detenção ou antes da expulsão. Muitos também mencionaram que não lhes foram disponibilizadas máscaras ou que não puderam se distanciar fisicamente de outras pessoas, o que compromete as alegações de que as expulsões com base no Título 42 visam a evitar a disseminação da Covid-19.

Os maus-tratos sofridos pelas pessoas haitianas nas unidades de detenção dos EUA – que incluíam a falta de acesso suficiente a alimentos, assistência médica, informações, intérpretes e assistência jurídica – afetaram de forma cumulativa as pessoas entrevistadas para este relatório, pois já haviam sofrido uma série de violações de direitos humanos, inclusive racismo contra pessoas negras, durante sua viagem para os Estados Unidos.

Finalmente, todos as 24 pessoas haitianas entrevistadas pela Anistia Internacional afirmaram terem sido enviadas ao Haiti de avião, com algemas e grilhões – tratamento que lhes causou grande dor e sofrimento psicológico pela associação dessas práticas à escravidão e à criminalidade. Na avaliação da Anistia Internacional, com base nos testemunhos coletados, essas ações configuram tortura com base na raça e na situação migratória, segundo o direito internacional dos direitos humanos, que proíbe de forma absoluta a tortura e outros maus-tratos, e exige que os Estados protejam as pessoas de todos os atos de tortura, incluindo aqueles baseados em vulnerabilidades específicas, tais como raça, condição migratória e nacionalidade.

Uma história de discriminação racial contra as pessoas negras

A história da escravização das pessoas afrodescendentes e as formas contemporâneas de racismo sistêmico contra pessoas negras são o pano de fundo crítico desta pesquisa. Como sugerem as evidências destacadas no relatório, as práticas de maus-tratos contra as pessoas haitianas são generalizadas e ocorreram historicamente em diferentes épocas e lugares, indicando a ocorrência de discriminação racial sistêmica e de longo prazo dentro do sistema de migração, com o objetivo de punir o povo haitiano e impedi-lo de buscar refúgio nos Estados Unidos.

A Anistia Internacional pede a todos os Estados que enfrentem e desmantelem a discriminação racial sistêmica e reconheçam como o racismo está enraizado em estruturas e práticas que surgiram durante o colonialismo e a escravidão. As autoridades dos EUA devem tomar medidas para reformar todas as instituições, legislações, políticas e práticas que reforcem estereótipos raciais e nacionais prejudiciais. O Título 42 é um exemplo claro de tais políticas. Não apenas desconsidera ilegitimamente as leis que protegem as pessoas de serem deportadas quando isso as põem em risco, como também reforça estereótipos nocivos e racistas que levam a violações dos direitos humanos.

“As práticas de maus-tratos contra as pessoas haitianas são generalizadas e ocorreram historicamente em diferentes épocas e lugares, indicando a ocorrência de discriminação racial sistêmica e de longo prazo dentro do sistema de migração, com o objetivo de punir o povo haitiano e impedi-lo de buscar refúgio nos Estados Unidos.”

Embora a Anistia Internacional tenha examinado e reunido fortes evidências de que o racismo contra pessoas negras esteja incorporado ao sistema de migração dos EUA, as autoridades do país não parecem proativamente coletar dados sobre preconceito ou discriminação racial, conforme exigido pelas normas internacionais de direitos humanos.

Reiterando os apelos feitos por mais de 100 congressistas ao governo Biden em fevereiro de 2022, a Anistia Internacional pede que governo dos EUA se comprometa a reverter as políticas contra as pessoas negras e a fazer uma revisão completa do tratamento desigual dispensado às pessoas negras que buscam proteção no sistema migratório dos EUA.

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