Ao circular no centro da cidade, Linoca passou a refletir sobre seu lugar no mundo. Em uma reflexão sobre espaços à nível geográfico, social e étnico, a jovem que morava entre o Capão Redondo e Campo Limpo, bairros da periferia de São Paulo, passou por um processo de entendimento sobre si e sobre a necessidade de se expressar. Foi através da arte que Linoca encontrou mais um espaço a ser ocupado.
Aline Bispo, conhecida como Linoca Souza, é artista visual, ilustradora e curadora – atualmente é responsável pelo acervo artístico de ilustrações de artistas negras do Instituto Ibirapitanga. O grafitti foi o primeiro meio de expressão artístico que Linoca mergulhou e que se relaciona com seu período de movimento, circulação e ocupação de espaços da cidade, mas hoje ela encontra na ilustração e, mais recentemente, na pintura, novos canais de arte e suas obras agora circulam dentro de casas, bibliotecas, transportes públicos, praças e ruas – onde quer que o acesso à internet chegue.
Nesta sexta-feira de arte preta, apresentamos a artista visual e suas inspirações, trajetórias e, principalmente, luta antirracista através da arte.
Como começou a sua relação com a arte?
O processo de criar sempre esteve presente na minha vida. Minha mãe trabalhava em casa com costura, então sempre tive muitas revistas de de moda e manequins, então ficava brincando com tecido, montando minhas bonecas e, por ser filha única, era um universo muito individual em que eu tinha a necessidade de criar meus universos e espaços. Quando fui ficando mais velha, fui estudar no centro da cidade e esse processo de sair da minha casa e ir para outro lugar tão distante fez com que eu começasse a pensar sobre o porquê eu precisava me deslocar tanto para chegar no curso. Esse processo de entendimento foi muito importante para pensar em como expressar isso para o mundo e dividir esses questionamentos de porque tudo é longe, porque o ônibus pra gente é sempre tão cheio e entender o cotidiano da cidade. Por volta de 2008 comecei a trabalhar com grafitti, retomei meus trabalhos individuais e levei isso pra fora.
O grafitti foi muito especial para mim, onde conheci outras pessoas e descobri a possibilidade de desenhar e me expressar para o mundo. Quando fiz outro curso na ETEC (Escola Técnica Estadual de São Paulo), de comunicação visual, meus questionamentos continuavam: preciso sair de casa, pegar um ônibus para o centro porque as ETECs não tinham cursos considerados “elitizados” perto da minha região. Na comunicação visual eu comecei a estudar ilustração, tive acesso a outros processos técnicos e vi que poderia também me expressar dentro dos meios digitais.
Revisitando sua trajetória, existe algum momento que você para e pensa: quem bom que não desisti? Existiu, ou ainda existe, barreiras? Quais?
Eu sou muito agradecida pelas oportunidades e por ter pessoas próximas que me ajudaram a entendê-las, mas tem uma série de barreiras que estão na vida de que vem do mesmo bairro que eu ou da mesma realidade social. Quando penso na realidade da minha família, têm vários fatores. Por exemplo, quando conclui a graduação foi um choque para minha mãe, que é uma mulher preta, chegar na colação, olhar ao redor e dizer “eu sou a pessoa de pele mais escura aqui”. Entre os pais, ela era a única mulher negra e eu, entre os estudantes, a pessoa de pele mais escura. Lembro de levar isso para a turma logo no primeiro semestre, porque existiam uma série de “alfinetadas” e eu, já era mais velha e com outra noção de onde eu estava na sociedade, reuni os alunos, li uma carta e disse “vocês vão me respeitar a partir de hoje”.
Quando penso na minha trajetória, vejo em diversos momentos, desde coisas que algumas pessoas fingem que são brincadeiras até situações que passam pelo machismo, pelo racismo e por questões sociais. Eu sou grata por conseguir atingir diversas pessoas com meu trabalho, mas é um processo cotidiano, porque essas alfinetadas – essas violências – acontecem o tempo todo e quando não é com a gente, é com o outro. Então temos que ficar atentas para apoiar e estender nossa mão quando isso acontecer.
Agora como curadora do acervo do Ibirapitanga, onde tem esse processo muito especial de troca com ilustradoras, existem artistas que ainda não tem CNPJ, que estão produzindo sem recursos, por exemplo. Eu levo isso como questão porque também são barreiras e nós estamos aqui para ajudar a rompê-las.
Você já ilustrou algumas intelectuais negras e suas obras. De que forma essas mulheres marcaram ou inspiraram você?
É muito responsabilidade! Na coluna da Djamila Ribeiro (semanal na Folha de São Paulo), eu tenho que ler o texto antes para poder ilustrar. Então é um processo de criação e reflexão contínuo. Ela (Djamila) traz referências nos textos que me fazem pensar, buscar, pesquisar…. Algumas vezes é muito marcante, e eu falo “isso mexeu muito comigo!”. Os outros trabalhos, como a capa do Sula (de Toni Morisson), e o livro da Lélia (Por um feminismo afro-latino-americano), foram uma honra de produzir, poque são pessoas que já estavam na minha história. Por isso, encaro com muita responsabilidade porque eu sei que vai chegar em outras pessoas.
Penso no leitor, na leitora e essa troca, com esse afeto, vem para mim de uma maneira muito marcante.
A minha mãe me inspira muito e as vezes eu relaciono as histórias em que trabalho com a dela. Tudo isso me inspira para que eu continue minhas pesquisas. Tudo que eu leio vou fazendo anotações para usar no futuro.
Na sua opinião, o campo das artes estimula que mais artistas negras apareçam?
Existem muitos espaços no campo das artes. Em 2016, uma ação muito bonita aconteceu no Itaú Cultural, chamada “Diálogos Ausentes”, e nesse evento tivemos falas de Rosana Paulino, Renata Felinto, e diversos outros artistas pretos. É importante que esses espaços existam, mas ainda acho que precisamos abrir caminho para ouvir quem não é acadêmico. Muitas pessoas desenvolvem trabalhos, mas não tem a oportunidade de fazer uma graduação ou continuar nela, porque é custoso. Isso pensando em que quer seguir o caminho acadêmico, porque tem gente, falando de artistas brancos, que tem essa possibilidade e recusa. Aí escutamos: “ah mas sou autodidata”, mas no caso a pessoa consegue pagar o preço altíssimo dos materiais, ou então, “eu não estudei mas fiz intercambio em outro o país”. Algumas pessoas têm esses recursos e facilidades, mas não necessariamente estudou formalmente. Quando pensamos na realidade do artista negro, por conta da nossa desigualdade social, a pessoa que estuda artes em geral passa por problemas financeiros, e aquela que não estuda às vezes não consegue nem acessar o básico, ir à uma exposição – porque mesmo quando gratuitas, existem outros custos como a condução até lá. Para mim esse lugar do artista e da abertura de oportunidades é muito importante, mas estamos caminhando muito devagar para isso.
A internet tem facilitado o acesso e iniciação ao mundo artístico?
A internet, nesse sentido, ajuda. Tem gente que não tem computador ou acesso, mas apesar desse contexto, ela vem como outro caminho: o digital. Temos essas pequenas galerias que podemos ver no Instagram e no Behance. Para mim a internet é muto especial por ser esse lugar de troca.
Com a internet, pessoas que não conseguem outros espaços estão criando seus próprios espaços.
De que maneira o difícil acesso à materiais, estudos e museus, e, em contrapartida, uma maior facilidade do acesso à internet, tem impactado na representatividade de corpos negros na arte?
Tem públicos que não acessam museus e galerias – inclusive por medo. Então abrir espaços e levar seu semelhante a uma exposição, por exemplo, faz com que essa pessoa saiba que ela pode ocupar esse lugar. A internet faz isso: ela mostra que seu semelhante está falando sobre você, sobre questões que dizem a seu respeito e que você pode abrir seu celular e ver, da sua casa ou do seu trabalho. É importante que em algum momento exista uma intersecção entre levar o público da internet para os museus.
Se você pudesse dar um conselho para um/a artista negra/o que está começando, ou para esse/a jovem que gosta muito de arte, qual seria?
Eu diria: se jogue! Vá sem medo! A macumba sempre vai passar pelo meu trabalho e eu vou falar de um lugar muito importante para mim que é a encruzilhada: quando você tem possibilidades de caminhos, mas precisa saber por onde percorrer. Eu acho que quando somos jovens e temos essas possibilidades, temos que escolher os melhores caminhos, mas se precisar voltar para essa encruzilhada novamente e escolher outra opção, não tem problema. Feche os ouvidos para o que não precisa ser ouvido e siga sem medo.
Precisamos de mais pessoas pretas produzindo artes e podendo seguir por essas encruzilhadas sem medo de ser quem são.
Quem são suas maiores referências?
Como referência, a minha mãe, a história das mulheres da minha família e meu avô. No mundo artístico, sempre vou falar da Rosana Paulino, uma artista fundamental para ser estudada e ouvida. Ela foi a primeira artista negra a se tornar doutora e o trabalho dela é muito bonito e representativo. Renata Felinto e Lélia Gonzalez são mulheres que eu estudo, vejo e revejo as obras. Sidney Amaral tem um trabalho no campo das artes que é muito especial e apresenta obras que falam do povo preto com um olhar cotidiano.
>> Conheça o trabalho de Linoca Souza no Instagram @linocasouza e o o acervo de artistas negras e negros do Instituto Ibirapitanga <<
Este conteúdo faz parte da campanha Toda Friday é Black, um movimento aberto a todas e todos que querem combater as desigualdades raciais impostas pelo racismo estrutural. Separamos as sextas-feiras para discutir temas que somem na luta antirracista. Uma campanha Anistia Internacional Brasil, Olodum, Geledés, Conaq, Cedenpa e ONG Criola.