O acordo sobre justiça transacional firmado ontem pelo governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) traz um raio de esperança para milhões de vítimas dos abusos e violações dos direitos humanos cometidos durante os longos 50 anos de conflito armado na Colômbia, declarou a Anistia Internacional.
No entanto, as imprecisas definições e as possíveis anistias fazem temer que nem todos os responsáveis de abusos contra os direitos humanos enfrentem a justiça. A única maneira de a Colômbia deixar para trás sua turbulenta história é garantir que todos os responsáveis por tortura, homicídios, desaparecimentos forçados, crimes de violência sexual ou deslocamento forçado de milhões de pessoas que foram cometidos por todo o país finalmente prestem contas por seus crimes.
“Este acordo é um avanço muito importante e um claro sinal de que o final das hostilidades está finalmente quase ao alcance da mão. No entanto, deixa ainda muitas questões sem a resolver no que diz respeito a garantir a verdade, a justiça e a reparação a todas as vítimas, de acordo com o direito internacional”, assinalou Erika Guevara-Rosas, diretora do Programa da Anistia Internacional para as Américas.
“A Colômbia tem o dever de investigar e, se houver provas admissíveis suficientes, processar a todos os supostos responsáveis penais por crimes de direito internacional. Esta obrigação não é negociável, nem sequer no contexto de um processo de paz.”
Ambas as partes anunciaram que, com apenas um assunto por resolver, relativo ao desarme e desmobilização, será firmado um acordo de paz em 23 de março de 2016 no mais tardar, ou seja, dentro de seis meses. As FARC concordaram em depor as armas 60 dias depois.
A questão da justiça foi um dos temas mais espinhosos das negociações de paz, que têm se desenvolvido em Cuba desde 2012. Ao longo deste período, a Anistia Internacional tem sustentado firmemente que se dê prioridade nas conversações aos direitos humanos das vítimas do conflito, incluindo seu direito à justiça.
As FARC e o governo concordaram em estabelecer uma “Jurisdição Especial para a Paz” composta de um tribunal e salas de justiça que serão formados por juízes e magistrados colombianos eleitos pelas FARC e pelo governo, junto com uma participação limitada de peritos estrangeiros.
O tribunal e as salas de justiça terão competência sobre todos aqueles que tenham participado direta ou indiretamente no conflito armado e estejam implicados em “crimes graves”.
Entende-se por tais crimes os que são contra a humanidade, o genocídio e os crimes de guerra, incluindo o deslocamento forçado, os desaparecimento forçado, a tortura, a tomada de reféns, as execuções extrajudiciais e a violência sexual, entre outros delitos.
No entanto, este processo judicial estará centrado apenas nos crimes “mais graves e representativos” e, no caso das FARC, somente aos que forem considerados os mais responsáveis.
Os acusados de “crimes políticos e conexos” poderão recorrer a uma nova lei de anistia. Tem, entretanto, que se definir a natureza do que se constitui um “delito conexo”, mas não haverá anistia aos que forem declarados culpados de crimes graves. O procurador-geral disse que poderiam beneficiar-se da anistia cerca de 15.000 membros das FARC.
Os que admitirem sua responsabilidade em crimes graves serão condenados a entre cinco e oito anos de “restrição de liberdade”, mas não de prisão. Os que reconhecerem sua responsabilidade tardiamente terão impostas penas de entre cinco e oito anos de prisão. Os que forem declarados culpados após terem negado sua responsabilidade cumprirão até 20 anos de prisão.
O fato de centrarem-se nos que sejam considerados os “máximos responsáveis” poderia levar muitos autores de abusos contra os direitos humanos a eludir a justiça, pois o conceito não está definido claramente. Teme-se, também, que seja difícil conseguir que sejam emitidas sentenças condenatórias no caso de determinados crimes, como as execuções extrajudiciais e a violência sexual.
Em 4 de junho deste ano, o governo e as FARC anunciaram também planos de criação de uma comissão da verdade, mas se teme que os tribunais não possam utilizar nenhuma informação procedente dela. Poderia ver-se minada, então , a capacidade da “Jurisdição Especial para a Paz” para processar abusos e violações dos direitos humanos.
A Anistia Internacional pede que sejam realizadas investigações penais independentes para garantir que os que os que recorram à anistia não estejam implicados em abusos e violações de direitos humanos.
O governo deve garantir que, qualquer que seja o acordo de paz com as FARC, não se proceda como ocorreu com o processo de desmobilização iniciado com os grupos paramilitares em 2005 em virtude da Lei de Justiça e Paz. Neste processo, cerca de 90 por cento dos aproximadamente 30.000 paramilitares supostamente desmobilizados recorreram a anistias de facto sem que fosse realizada previamente uma investigação efetiva sobre sua possível participação em crimes de direito internacional. Dos 10 por cento restantes que foram objeto de investigação criminal, apenas em poucos casos se chegou à fase de julgamento uma década mais tarde. Muitos paramilitares do médio e baixo escalão não se desmobilizaram.
Informação complementar
O conflito armado interno da Colômbia confrontou as forças de segurança e os paramilitares contra diversos grupos guerrilheiros durante mais de 50 anos.
Foi caracterizado pela perpetração sistemática e generalizada de abusos e violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, e por um absoluto fracasso em levar à Justiça os supostos autores de tais crimes.
As forças de segurança e os paramilitares, sozinhos ou em conivência, e os grupos guerrilheiros foram responsáveis por reiterados abusos contra civis, entre eles, homicídios ilegítimos, desaparecimentos forçados e sequestros, deslocamento forçado, tortura e crimes de violência sexual. Pouquíssimos dos supostos responsáveis prestaram contas alguma vez.
Os abusos e violações de direitos humanos continuam afetando de maneira desproporcional a determinadas comunidades e grupos, especialmente nas zonas rurais, como os povos indígenas e as comunidades afrodescendentes e camponesas, assim como aos defensores e defensoras dos direitos humanos, incluindo sindicalistas e líderes comunitários.
Há crescentes esperanças de que o segundo grupo guerrilheiro mais importante do país, a Frente de Libertação Nacional (ELN), estabeleça conversações oficiais de paz com o governo no início de 2016.
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