*Originalmente publicado em Marie Claire Brasil, em 24/06/2021.
Foto: Cássia Roriz
Por Jurema Werneck
Maio foi um mês que começou contraditório, com marcas de vida e de morte, de raiva e desapontamento. Logo nos seus primeiros dias, haviam ido embora, perdidos para sempre, mais de 410 mil dos nossos e das nossas para a Covid-19. Fomos também impactados pela tragédia, em Saudades-SC, onde criancinhas de pouco mais de um ano foram mortas esfaqueadas, junto com duas de suas professoras, por um jovem de dezoito anos. No Rio de Janeiro, uma incursão policial descontrolada (para dizer o mínimo) na favela do Jacarezinho deixou 28 mortos, a maioria jovens negros e pobres e uma legião de pessoas traumatizadas. E ainda, depois de 53 dias de internação, um dos maiores comediantes do país morreu de Covid-19 e parecia que o sorriso morria com ele.
Em minha cabeça, plena das vozes das mulheres negras, o que reverberava era a voz de um homem branco: Carlos Drumond de Andrade. No poema “Mário de Andrade Desce aos Infernos” está dito: “(…) No chão me deito à maneira dos desesperados./ Estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio, esqueço que sou um poeta, que não estou sozinho, preciso aceitar e compor, minhas medidas partiram-se, mas preciso, preciso, preciso.(…)”. Tantas dores e perdas a voz do poeta embalou…
Nossas medidas ainda estão partidas. Os números não dizem nada das histórias das vidas perdidas e que não conseguimos mais narrar. São Paulos, Marias, Anas, Franciscos que poderiam ainda estar entre nós. A raiva e o desapontamento que sinto é reflexo da negligência e da incompetência daqueles que têm o dever de agir através de políticas públicas para garantir o direito básico à vida e à saúde. Estes são os responsáveis por essas perdas e dores que parecem não ter fim.
Por isso vivi o lançamento da primeira biografia de Sueli Carneiro como mais que um feito histórico grandioso. “Continuo Preta”, escrita por Bianca Santana e lançada em 11 de maio, era – e é – um jeito de respirar, de dizer que nem tudo é sufocação e desespero. Em tempos em que a falta de oxigênio leva embora os nossos e nossas, respirar esperança e nutrirmo-nos de resistência são combustível para seguirmos lutando por saúde, a nossa, em meio ao caos que foi instalado no Brasil de 2020, e exacerbado em 2021.
Imagine uma mulher negra pobre nascer, em 1950, em uma São Paulo segregacionista. E crescer em um Brasil excludente e racista como primogênita de uma família de seis irmãos, com seu pai e mãe. Todos pretos, pobres, a quem a sociedade desigual despejava, e ainda despeja, profecias autorrealizáveis de pobreza, baixa escolaridade, uma vida de sacrifícios e morte precoce. Pois bem, esta mulher negra, aos 70 anos celebrados ainda no início desta pandemia, que parece não acabar nunca, compartilhou sua história de vida, como denúncia e recusa contundente às apostas racistas, afirmando-se: “eu ainda estou aqui!”
Na trajetória de Sueli Carneiro, o que é escuro é traduzido como resistência e luta e é cheio de possibilidades de mudança, contradizendo o poeta. No seu caminho, tudo é espelho, reflexo de quem vem antes, oportunidade de autoconhecimento coletivo como mulheres negras, como mulheres, como brasileiras e brasileiros, como humanidade.
A potência de termos uma biografia de mulher negra disponibilizada para todo mundo é de poder espelhar o que existe, quem existe e existiu a partir do fio condutor daquela história de vida.
A partir da vida de uma grande ativista e intelectual como Sueli Carneiro, encontraremos outras ativistas e intelectuais potentes como Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Fátima Oliveira, Luísa Bairros que, de diferentes formas, imprimiram marcas na trajetória da biografada e já partiram.
E veremos também Nilza Iraci, Lúcia Xavier, Sônia Nascimento, Conceição Evaristo e tantas outras que ainda estão aqui, como tantas, como você e eu.
Há ainda muitas vidas que precisam ser narradas. A história escrita e registrada de Sueli é um capítulo fundamental da história de todas nós, para todas e todos, abrindo caminho para a reflexão e a ação que precisam nos levar a mudanças na sociedade do medo, do caos e da invisibilidade. Maio terminou, a luta não.