Os governos da América mantêm uma atitude hipócrita a respeito da tortura, declarou a Anistia Internacional hoje, ao lançar sua última campanha global Chega de Tortura.
A tortura e os maus-tratos são generalizados no continente e apesar de a América contar, tanto em nível regional como nacional, com algumas das leis e mecanismos contra a tortura mais sólidos do mundo, os responsáveis raramente comparecem à justiça.
“O impressionante conjunto de mecanismos jurídicos estabelecidos na América para prevenir e punir a tortura é ignorado diariamente. Essa situação deve terminar”, disse Erika Guevara Rosas, diretora do Programa para a América da Anistia Internacional.
A campanha Chega de Tortura terá a duração de dois anos e é lançada com um novo informe intitulado A tortura em 2014: 30 anos de promessas descumpridas, que oferece uma perspectiva geral do uso da tortura no mundo hoje em dia.
Nos últimos cinco anos, a Anistia Internacional informou sobre a tortura e outras formas de maus-tratos em pelo menos 141 países de todas as regiões do mundo: praticamente todos os países nos quais a organização trabalha.
Em vários países da América, o uso da tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes é uma prática habitual e uma grande parte da população o aceita como resposta aos altos índices de crimes violentos.
Trinta anos depois de a ONU adotar, em 1984, a Convenção contra a Tortura, a Anistia Internacional observou que as autoridades de ao menos 12 países da América continuam torturando. Dado o caráter secreto deste tipo de abuso, é provável que os números reais sejam bem maiores.
Em 1985, os governos, mediante a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, também se comprometeram a combater esta prática.
Uma enquete mundial encomendada à Globescan revelou que quase a metade (44%) das pessoas entrevistadas – de 21 países de todos os continentes – temem correr perigo de serem torturadas caso sejam detidas em seus países.
No Brasil, 80% das pessoas entrevistadas temem ser torturadas se forem colocadas sob custódia, enquanto no México este temor é manifestado por 64%. Estes foram os percentuais mais altos de todos os países onde a enquete foi conduzida. Nos Estados Unidos e Canadá, os índices foram de 32% e 21%, respectivamente.
“A pesquisa da Globescan indica que o temor de sofrer tortura é especialmente elevado na América, onde foram expressos altos níveis de preocupação no Brasil, Argentina, México e Peru. Se a metade de sua população vive com temor de ser torturada caso seja colocada sob custódia, é hora de se empreender ações enérgicas para erradicar este temor”, disse Erika Guevara Rosas.
A tortura está presente nas prisões e nos centros de detenção da América. Em muitos países, as pessoas detidas são submetidas a surras, descargas elétricas, abusos sexuais e negação de acesso a serviços médicos. As péssimas condições de reclusão – incluindo a severa superpopulação – são práticas habituais.
A tortura continua sendo utilizada como forma de punição contra reclusos ou para obter confissões de supostos criminosos.
Em alguns países da região foram realizados avanços legislativos para prevenir a tortura, mas estes avanços não foram acompanhados de investigações efetivas sobre as denúncias de abusos. Os responsáveis raramente são levados à justiça.
“As deficiências dos sistemas de justiça na região contribuem notavelmente para a continuação da tortura e outras formas de maus-tratos e acentuam a arraigada cultura de impunidade”, declarou Erika Guevara Rosas.
No México, os informes de tortura aumentaram à medida que se intensificou a espiral de violência em consequência da luta iniciada em 2006 pelo governo contra o crime organizado. Muitas detenções são praticadas sem ordem judicial e frequentemente são detidas sem provas pessoas pertencentes a comunidades pobres e marginalizadas. Essas pessoas carecem de recursos para ascender à assistência letrada efetiva, o que aumenta seu risco de sofrer tortura e outros maus-tratos.
A ausência de investigações efetivas sobre os abusos e violações de direitos humanos, incluindo a tortura, continua sendo também um semblante do conflito da Colômbia, que já dura 50 anos. Todas as partes, incluindo as forças de segurança – atuando sozinhas ou em conivência com os paramilitares – e os grupos guerrilheiros continuam sendo responsáveis por homicídios, desaparecimentos forçados, sequestros, tortura, remoções forçadas e violência sexual que vitimaram milhares de pessoas.
O governo dos Estados Unidos tampouco garante a prestação de contas por seus atos de tortura e desaparecimentos forçados cometidos no contexto das operações antiterroristas empreendidas na denominada “guerra ao terror”. Não compareceu à justiça nenhum dos responsáveis pela utilização de técnicas de interrogatório como a simulação de afogamento (waterboarding), a privação prolongada de sono ou posturas em tensão nos centros de detenção secreta administrados pela Agência Central de Inteligência (CIA) em todo o mundo.
Centenas de delitos relacionados com atos de tortura cometidos na história recente da região durante os brutais regimes militares de países como Chile, El Salvador e Uruguai ainda não foram julgados, em muitos casos por causa das leis de anistia.
A Anistia Internacional pede aos governos de toda a América que apliquem os mecanismos de proteção existentes para prevenir e castigar a tortura. Esses mecanismos incluem exames médicos imparciais, acesso imediato a advogados, inspeções independentes dos locais de detenção, investigações efetivas das denúncias de tortura, o processo dos suspeitos e indenizações adequadas para as vítimas.
“As autoridades da América têm a sorte de contar com alguns dos mecanismos contra a tortura mais sólidos do mundo, um fato que faz com que a magnitude da tortura na região seja ainda mais injustificada. Os governos, agora, devem dedicar seus esforços políticos para garantir que estes mecanismos funcionem de maneira efetiva”, declarou Erika Guevara Rosas.