No dia 28 de setembro, celebramos o Dia Mundial de Ação pelo Aborto Legal, Seguro e Acessível. Segundo Ana Piquer, diretora da Anistia Internacional para as Américas:    

“Apesar das numerosas vitórias da Maré Verde nas Américas nos últimos anos, os direitos conquistados e as oportunidades de expandir a proteção do aborto estão sob o cerco de atores fundamentalistas. O revés no caso Roe vs. Wade nos Estados Unidos, no ano passado, foi um alerta para o movimento, lembrando-nos mais uma vez de que a defesa dos nossos direitos e a luta para expandi-los devem ser permanentes”.  

“O Brasil tem a oportunidade de se juntar à Maré Verde e reconhecer o direito ao aborto legal e seguro para mulheres, meninas e toda as pessoas que podem engravidar. Durante décadas, a criminalização do aborto violou nossos direitos sexuais e reprodutivos e discriminou desproporcionalmente as mulheres negras, indígenas e pobres. Está na hora de o Supremo Tribunal Federal pôr fim a esta injustiça”.  

Informação adicional:  

“A maré verde” foi o nome dado ao movimento feminista e de direitos humanos que lutou durante anos pela legalização do aborto em toda a América Latina. Esse movimento impulsionou avanços importantes, mas o risco de retrocessos continua na região.  

O revés no caso Roe vs. Wade exacerbou uma crise de saúde sexual e reprodutiva nos Estados Unidos, pois 21 estados restringiram parcial ou totalmente o acesso à interrupção da gestação. Diversos estados, como Ohio, Kentucky e Montana, conseguiram impedir as iniciativas contra o aborto no âmbito legislativo ou eleitoral. No entanto, grupos antidireitos continuam fomentando novas proibições nos estados e agora tentam restringir o aborto medicinal e prejudicar – quando não criminalizar – as redes de solidariedade interestaduais que surgiram para ajudar as pessoas que procuram abortos. 

A Argentina, território chave para o avanço da Maré Verde, terá nas eleições presidenciais um candidato que é contra o aborto e que, caso vença, propõe submeter a interrupção legal da gravidez a uma consulta. Quase quatro anos após a despenalização no país, a objeção de consciência continua a ser uma prática fundamental para restringir, de fato, a garantia do direito, especialmente nos meios rurais. A criminalização social ressurgiu, especialmente contra mulheres jornalistas que cobrem questões de gênero e que enfrentam serias dificuldades nos principais meios de comunicação.  

No Brasil, os próximos dias podem ser decisivos para fazer avançar a despenalização do aborto até as 12 semanas de gestação, através da votação reaberta no Supremo Tribunal Federal (STF), por sua ministra e presidente, Rosa Weber, que, antes de se aposentar, votou a favor dos direitos reprodutivos das mulheres e de todas as pessoas que procuram acesso ao aborto. No Brasil, uma em cada sete mulheres com 40 anos ou menos já fez um aborto e metade delas o fez antes dos 20 anos. Segundo dados oficiais, uma em cada 28 pessoas que tentam fazer um aborto morre em condições inseguras. Neste contexto, as desigualdades raciais são evidentes: as mulheres negras têm duas vezes mais probabilidade de morrer de aborto inseguro, uma vez que têm 46% mais probabilidades de fazer um aborto. Portanto, elas estão diferentemente expostas aos riscos à sua saúde, vida e dignidade associados à criminalização do aborto. O aborto no Brasil ainda é crime, de acordo com o Código Penal de 1940, exceto nos casos de estupro e anencefalia. Embora existam prerrogativas legais para garantir o acesso nesses casos, as mulheres enfrentam desinformação e barreiras de acesso e atendimento nos centros de saúde.  

Pouco mais de um ano após a conquista do direito ao aborto na Colômbia, foram interpostos vários recursos judiciais para reverter a despenalização . O tribunal manteve a decisão ao rejeitar a anulação da sentença que despenalizou o aborto, mas algumas tutelas resultaram na imposição de barreiras adicionais às mulheres indígenas. Paralelamente, foram comunicadas irregularidades num referendo que propunha a restrição da interrupção voluntária da gravidez em âmbito constitucional. Por último, o acesso efetivo à interrupção voluntária da gravidez na Colômbia continua a ser restringido pela falta de informação, ou pela desinformação por parte de grupos anti-direitos, pela negligência médica, incluindo a utilização abusiva da objeção de consciência, e pela falta de cobertura física dos centros que realizam o procedimento. 

O México é outro país que registou progressos decisivos: os acórdãos do mais alto tribunal declararam a inconstitucionalidade da criminalização absoluta do aborto e o despenalizaram no código penal federal. Assim, o direito ao aborto foi reconhecido no México e foi determinada a obrigação das instituições federais de saúde de garanti-lo. Localmente, 12 Estados já despenalizaram o aborto, total ou parcialmente. No entanto, em dois terços do país ainda existem restrições em âmbito local e, nos lugares onde é permitido, há ainda um longo caminho a percorrer para garantir o acesso. Quatro anos após a despenalização, Oaxaca tem apenas sete clínicas que efetuam os procedimentos e, muitas vezes, falta equipamento e material para realizar.  

O Peru e a Costa Rica também enfrentaram ameaças. Vários projetos de lei procuraram eliminar ou obstruir o aborto terapêutico no país andino, ignorando o fato de que, de acordo com dados oficiais de 2021, todos os dias quatro jovens com menos de 15 anos eram forçadas a ser mães. Por isso, em julho de 2023, o Comité dos Direitos da Criança da ONU considerou que o Estado peruano violou os direitos à vida, à saúde e à integridade de Camila, uma menina indígena vítima de violação a quem foi negado o acesso ao aborto terapêutico. O Partido Republicano, que lidera o Conselho Constitucional do Chile, pronunciou-se contra a lei que regulamenta o aborto em casos de violação, de inviabilidade fetal e de perigo de vida. Até a data, apresentaram iniciativas para eliminar a proteção do aborto e pretendem impor restrições também por via constitucional.  

El Salvador, Nicarágua, Honduras, República Dominicana, Jamaica, Haiti, Suriname, Aruba e Curaçao continuam a criminalizar o aborto. Isto não reduz a prática, mas apenas coloca em risco as pessoas que procuram o aborto, afetando desproporcionadamente as pessoas empobrecidas, racializadas, camponesas, indígenas e afrodescendentes. Antes da descriminalização parcial do aborto no Equador, pelo menos 148 pessoas tinham sido criminalizadas por terem feito, acompanhado ou ajudado a fazer abortos. Entre elas, 33 jovens.  

No caso específico de El Salvador, dados de organizações locais indicam que pelo menos 181 mulheres foram criminalizadas por emergências obstétricas que resultaram em abortos entre 1998 e 2019. Sete ainda enfrentam processos criminais. A convenção sobre a proibição absoluta do aborto será em breve definida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos com base no caso Beatriz et al. v. El Salvador. Uma eventual decisão do Tribunal a favor de Beatriz e dos seus familiares seria significativa para El Salvador e obrigatória para o resto dos países com uma proibição absoluta do aborto no continente. 

Por último, em toda a região, a atuação de agentes anti-direitos, e mesmo a criminalização de acompanhantes de aborto ou de pessoas que procuram abortar, criam um ambiente de ansiedade, desinformação e desânimo que, por si só, constitui um obstáculo ao exercício do direito ao aborto. 

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