As famílias de milhares de civis afegãos mortos pelas forças militares norte-americanas e em missões da OTAN permanecem sem justiça, sustenta a Anistia Internacional em novo relatório divulgado esta segunda-feira, 11 de agosto. Numa análise pormenorizada das consequências sobretudo dos ataques aéreos e raides noturnos levados a cabo pelas tropas dos Estados Unidos, o relatório revela que até prováveis crimes de guerra não foram investigados ou devidamente punidos.

“São milhares de afegãos que foram mortos ou feridos pelas forças norte-americanas desde a invasão [do Afeganistão], mas as vítimas e suas famílias têm poucas chances de serem compensadas. O sistema de justiça militar dos Estados Unidos quase sempre falha no dever de responsabilizar os seus soldados por mortes ilegais e outros abusos”, frisa o diretor do Programa Ásia Pacífico da Anistia Internacional, Richard Bennett.

Dos casos analisados neste novo relatório, que envolve a morte de mais de 140 civis, nenhum foi objeto de processo judicial pelo exército norte-americano. “As provas de possíveis crimes de guerra e mortes ilegais parecem ter sido ignoradas”, segue Richard Bennet.

O relatório “Left in the Dark” (Deixados no Escuro) documenta em detalhe as falhas de responsabilização nas operações militares norte-americanas no Afeganistão. É feito, ainda, um apelo ao governo afegão para que mobilize esforços para garantir que as mortes ilegais sejam objeto de responsabilização criminal em quaisquer acordos bilaterais de segurança que venham a ser assinados por Cabul com a OTAN e os Estados Unidos.

A Anistia Internacional investigou a fundo dez incidentes que ocorreram entre 2009 e 2013, nos quais foram mortos civis em operações militares norte-americanas no Afeganistão. Pelo menos 140 pessoas morreram nestes dez incidentes, incluindo mulheres grávidas e 50 crianças. A Anistia Internacional entrevistou no curso da investigação 125 testemunhas oculares, vítimas e familiares das vítimas, incluindo muitas que não tinham prestado testemunho anteriormente.

Dois destes casos – um envolvendo um raide das Forças Especiais a uma casa na província de Paktia, em 2010, e o outro reportando a uma série de desaparecimentos, tortura e mortes nos distritos de Nerkh, em novembro de 2012, e de Maidan Shahr, em fevereiro de 2013, na província de Wardak, apresentavam fortes provas de crimes de guerra. Em nenhum dos casos foram abertos processos criminais.

Um dos testemunhos recolhidos, Qandi Agha, preso pelas Forças Especiais dos Estados Unidos em Nerkh no final de 2012, relatou ter sido submetido a tortura todos os dias. “Era espancado por quatro pessoas ao mesmo tempo, que me batiam com cabos. Ataram-me as pernas e espancaram-me as solas dos pés com tábuas”, contou. Qandi Agha denunciou também ter sido enfiado em barris de água e sujeito a choques elétricos.

Esta testemunha afirmou que tanto militares norte-americanos como soldados afegãos participaram de sessões de tortura. Contou ainda que, dos oito prisioneiros que se encontravam com ele enquanto esteve sob custódia das tropas dos Estados Unidos, quatro foram mortos, incluindo um – que identificou como Sayed Muhammed – cuja morte presenciou.

Raras investigações

Investigações criminais formais das mortes de civis no Afeganistão são extremamente raras. A Anistia Internacional tem conhecimento de apenas seis casos desde 2009 em que militares norte-americanos foram julgados em tribunal por crimes desta natureza.

Ao abrigo das leis internacionais humanitárias – as leis da guerra – nem todas as mortes de civis que ocorrem durante um conflito armado constituem uma violação legal. Mas, se existem indícios de que civis foram mortos deliberadamente ou de forma indiscriminada, ou em resultado de um ataque desproporcionado, estes casos tem de ser objeto de um inquérito imediato, completo e imparcial. E se tal investigação demonstrar que foram violadas as leis da guerra, têm de ser formuladas acusações e iniciado um processo judicial.

Das muitas testemunhas, vítimas e familiares que a Anistia Internacional ouviu no curso da investigação deste relatório, apenas duas indicaram terem sido entrevistadas por investigadores militares norte-americanos. Em muitos dos casos trabalhados neste relatório, porta-vozes da OTAN ou do exército dos Estados Unidos anunciaram a abertura de investigações, mas nunca foram tornadas públicas informações sobre o progresso das mesmas, tão pouco das suas conclusões – o que deixa as vítimas e seus familiares totalmente às escuras, sem informação sobre os incidentes que os afetaram.

“Instamos o exército dos Estados Unidos a investigar seriamente e imediatamente todos os casos documentados neste relatório e todos os demais em que civis foram mortos. As vítimas e familiares merecem justiça”, defende Richard Bennett.

O defeituoso sistema de justiça militar norte-americano é um obstáculo à obtenção de justiça para as vítimas afegãs e suas famílias. O sistema de justiça militar dos Estados Unidos alicerça numa lógica de “ações determinadas por ordens” e, em larga escala, sustenta-se nos relatos dos próprios soldados sobre as suas ações quando é avaliada a legalidade de uma operação. Sem autoridades independentes com as funções de procuradores, o sistema pressupõe que os soldados e seus comandantes reportem eles mesmos as violações de direitos humanos. O conflito de interesses parece ser óbvio.

Nos raros casos em que um caso chega realmente à fase de julgamento, prevalecem grandes preocupações sobre a falta de independências nos tribunais militares norte-americanos. É extremamente raro que afegãos sejam chamados a testemunhar em tribunal nestes casos.

“É urgente que seja feita uma reforma do sistema de justiça militar norte-americano. Os Estados Unidos têm de aprender com outros países, muitos dos quais deram passos enormes nos anos recentes para aproximar da justiça civil os seus sistemas de justiça militar”, evoca o diretor do Programa Ásia Pacífico da Anistia Internacional.

“Left in the Dark” documenta também a falta de transparência nas investigações e inquéritos de casos de mortes ilegais de civis no Afeganistão. O exército norte-americano retém dados gerais sobre a responsabilização por mortes de civis e só muito raramente fornece informação a respeito de casos individuais. O sistema de liberdade de informação na estrutura governamental norte-americana, criado para garantir transparência quando os organismos de poder falham no dever de prestar informação, não funciona de forma eficaz quando está em causa a morte de civis.

A Anistia Internacional insta também o governo afegão a criar prontamente os seus próprios mecanismos de investigação de abusos cometidos pelas Forças de Segurança Nacionais do Afeganistão (exército e unidades paramilitares), as quais irão assumir a responsabilidade total pelas operações de combate no país a partir do final de 2014.