Por Batista N. da Silva* e Jurema Werneck*
Publicado originalmente em UOL, no dia 17 de abril de 2021.
Quando o Massacre de Eldorado dos Carajás completou duas décadas, a Anistia Internacional organizou a exposição “Eldorado dos Carajás: 20 anos de impunidade”, em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O que o fotógrafo João Roberto Ripper registrou em imagens, Batista do Nascimento da Silva, sobrevivente do Massacre e membro da Coordenação Estadual do MST no Pará, recorda em palavras o que viveu há 25 anos:
“No dia 10 de abril de 1996, as famílias acampadas no então Acampamento Formosa deram início a uma grande marcha. O objetivo era chegar à capital do estado do Pará, Belém, e lá reivindicar a desapropriação da Fazenda Macaxeira. No dia 16, a marcha chegou à cidade de Eldorado dos Carajás, onde realizou, em frente à Prefeitura, um ato político para denunciar a morosidade do Estado. No início da tarde, o grupo chegou à Curva do S.
Até ali, tudo era entusiasmo. Quando a aurora apontou, junto a ela nos revigorou a mística de ver a terra conquistada para nela produzirmos o pão que saciaria a nossa fome, que era também fome de justiça social numa região onde reinava a exploração de mão-de-obra humana e a devastação dos recursos da natureza. No alvorecer do dia 17, ocupamos a rodovia PA-150 para dar continuidade à marcha e seguir o nosso sonho coletivo.
No entanto, as famílias foram surpreendidas pela chegada de alguns ônibus carregados de policiais para forçar a desobstrução da rodovia. Eles formaram um paredão com seus escudos e armas e deram início a sua missão. Sem liminar judicial ou intencionalidade de negociação, começaram a jogar bombas de gás lacrimogênio e a atirar contra nós. Uma bomba explodiu próximo a mim e seus estilhaços me atingiram. Eu estava junto com os homens que fizeram uma barreira de contenção para impedir os policiais de avançarem sobre as pessoas. Em meio a eles, havia um senhor, de apelido Surdo, que recebeu um tiro e caiu agonizando até a morte. Esse momento foi crucial. As pessoas tinham pedaços de madeira e começaram a atirá-los para se defender. Do outro lado, os policiais intensificaram a sua ação. Esse foi o cenário que deu início a maior chacina de trabalhadores camponeses do Brasil, que terminou com um total de 19 sem-terras assassinados e 69 mutilados e feridos com seus próprios instrumentos de trabalho.
O Massacre de Eldorado dos Carajás foi um dos atos de maior violação dos direitos humanos do campesinato brasileiro. As cenas que ficaram marcadas no chão da Curva do S foram desenhadas com restos e sangue de corpos humanos – corpos de trabalhadores que possuíam em comum a trágica experiência de serem vítimas da exploração na região do antigo Polígono dos Castanhais, fonte de especulação do latifúndio e da mineração até os dias atuais”.
O dia 17 de abril, que se tornou o Dia Nacional de Luta Pela Terra e o Dia Internacional da Luta Camponesa, é acompanhado de perto pela Anistia Internacional há 25 anos. O movimento global de defesa dos direitos humanos vem atuando para proteger e dar visibilidade às populações que sofrem as consequências da falta de segurança e da demora no processo de desapropriação e titulação das terras previstas constitucionalmente para a reforma agrária. A Anistia Internacional, desde o início de suas atividades no país, tem documentado e denunciado os abusos e o uso excessivo da força pela polícia, que muitas vezes atua orquestrada com agentes privados.
As violações de direitos humanos cometidas no Massacre de Eldorado dos Carajás foram documentadas e analisadas pela Anistia Internacional, que monitorou o andamento do processo judicial e, em 2002, esteve presente como observadora internacional independente no tribunal que julgou os oficiais que participaram da ação que resultou nas 19 mortes. Mas nem todos os responsáveis e presentes no massacre foram responsabilizados pelo crime. Os 143 policiais que atuaram na Curva do S, naquele dia, foram absolvidos e os únicos condenados foram o Coronel Mário Colares Pantoja e o Major José Maria Pereira Oliveira.
Embora revoltante e doloroso, hoje é um dia que nos fomenta a certeza de que a lutar pela terra é lutar por direitos humanos.
*Batista do Nascimento da Silva, mestrando em Educação e Linguagens (UFMS), sobrevivente do Massacre de Eldorado e membro da Coordenação do MST/PA
*Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.